DIREITO DOS COSTUMES E A ARTE LITERÁRIA
ENSAIOS SOBRE DIÁLOGOS ROSEANOS
PRIMEIRO ENSAIO
Descortino estes ensaios com o pulmão pulsando de irônico sentimento de arrebatação que, até agora, vigia nas calendas da promessa, outrora feita– 13 anos atrás –, mas que, agora, tornar-se o início de uma realidade a seu modo e tempo. Sejam muito bem vindos aos ENSAIOS SOBRE DIÁLOGOS ROSEANOS.
As regras de condutas extraídas do modo de viver de um povo que compõe uma sociedade é aquilo que denominamos de consuetudinário (dos costumes) e, por isso mesmo, independe de forma preestabelecida em atos legislativos normatizadores (leis no sentido amplo).
O “GRANDE SERTÃO VEREDAS”, a propósito, escrito por um médico, amante da liturgia do neologismo e atento aos ofegantes depoimentos de Miguilin e de Manuelzão (pessoas reais que levaram o autor para seu périplo), já em 1956 captou, com sua sagacidade e pelas lentes da literatura, o direito dos costumes, do dia-a-dia, dos intempéries e do tempo de cada um dos que habitavam aquela porção de terras denominada Cerrado, veja-se:
“- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja”.
Esses são os dois primeiros períodos da eloquente e extensa obra, ora vergastada, que, pela sua simples e direta leitura, já é possível compreender uma das regras de direito que visa à proteger o bem jurídico de maior valor para toda a sociedade: o direito à vida!
Importante contextualizar o fato de que o diálogo encenado, ora em exame, ocorre no interior do cerrado Mineiro, pelas bandas “do Corinto e do Curvelo”, em 1956, regiãodo norte de Minas Gerais, sobretudo, naquela época, totalmente desprovida de qualquer senso evolutivo formal e material (exceto o do conhecimento e da inteligência humana ali já enraizada).
“Nonada”, em dialeto Roseano: não é nada! Os tiros ouvidos, pelo fato de não terem sido disparados em uma “briga de homem”, significa a ausência de conduta reprovável e, portanto, indene sob a ótica do direito penal que é punitivo por natureza.
Aponto, logo de início, a captura da regra jurídica de um direito não escrito, não preestabelecido e, por certo, sequer conhecido naquele contexto factual, mas, sobremaneira, existente e produtor de consequências jurídicas. Tanto que, nos períodos subsequentes do mesmo parágrafo, o personagem, proprietário da arma de onde os disparos foram feitos, explica o motivo pelo qual emprestou a arma para que fosse usada na matança de um bezerro “erroso”, “por defeito como nasceu”, restando inconteste que era uma prática corriqueira sua, aquilo que chamou de “Alvejei mira em árvore”…”todo dia faço isso”… por essa razão sua arma foi solicitada para que o tal bezerro fosse sacrificado. Fato que justifica a imediata justificativa ao seu interlocutor quando escutaram o estampido: não é nada!
O direito à proteção da vida humana, portanto, se extrai de um pequeno diálogo e se contrapõe, na mesma cena literária, a um permissivo jurídico no que respeita à utilização da arma de fogo para outros fins, que não para uma “briga de homem”. E prossegue o personagem no seu modo comparativo: “Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão.”
Pragmática, a literatura sentencia como é o funcionamento das regras de conduta, valendo-se da compassada metonímia para o alinhavo de sua sustentação: “O senhor tolere, isto é o sertão”. E mais: traz à luma um conceito de verdade, de fato, de tolerável e de intolerável, sob o manto do regramento jurídico, ao explicar como seria o comportamento da natureza (“cachorrada”) ao ouvir “tiro de verdade”. Todos os outros, repita-se, não são verdadeiros e, portanto, não suscetíveis de produzir reprovação jurídica (“Nonada”), além de se registrar o olhar sobre a tolerância ao se demonstrar o lugar, não pelas suas características materiais e naturais, mas, pelo modo de vida e do regramento jurídico que lhe circundam.
Ainda neste mesmo parágrafo o personagem descreve o que é o sertão que se deve tolerar porquanto, aos olhos do direito dos costumes, pode-se dizer: quais são as regras de direito desse delimitado lugar, veja-se:
“Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.”
Nada criativo, se considerado o ambiente preestabelecido eivado de um direito consuetudinário, porém, dotado de uma imensidão de captações das regras de direito consuetudinário, inclusive com traços claros do modo de cumprimento de pena, na medida em que criminoso sofre aquilo que Jesus sofreu, independentemente de “arrocho de autoridade”. Fantástica trama literária que anuncia a mais forte presença do direito sem que haja leis, mas, sobretudo, fundado nos costumes e comportamentos arraigados dos humanos.
Até o próximo ensaio!