Crônica

Não aproveitamos nossos pais…

Contava com oito, dez anos… sei lá e lembro-me, perfeitamente, de meus pais, preocupados, me levando a um pediatra, na Praça da Sé. Pós consulta parávamos numa lanchonete e meu pai comprava um bauru no pão de forma e um copo de suco de laranja. Íamos e voltávamos de ônibus. Tudo pra mim era novidade e delicioso: do ônibus ao queijo quente a se esticar do pão à minha boca. Lembro-me, também, de irmos –  aos domingos – a pé à casa de meu tio, irmão de meu pai, que ficava uns dez quilômetros de distância da nossa e, no meio do caminho, meu pai me punha de cavalinho, carregando-me feliz ruas à fora…

Nas férias, viajávamos de trem para o interior de São Paulo. Eram oito horas de viagem e eu sonhava com o momento de chegar o elegante e simpático vendedor que, com seu carrinho, oferecia bebidas e salgados aos passageiros. Era um senhor negro vestido com um uniforme lindo: calça preta com faixa azul nas laterais e uma blusa branca que mais parecia uma doma ou um uniforme da marinha. O quepe o deixava ainda mais alto e sua voz era grave e em bom som, superando o barulho gostoso do trem que ao deslizar pelos  trilhos fazia. Eu me deliciava com a coxinha de frango e o guaraná…

Íamos ao sítio de meus padrinhos, também à pé, por varias estradinhas de terra. Eu, pra variar, de cavalinho em meu pai que, beirando as cercas de propriedades vizinhas, colhia laranjas lima e as descascava,  com um canivete, para meu deleite. Tudo era maravilhoso. Minha mãe, era como se fosse o apoio para qualquer emergência, a nos acompanhar. Era surreal! 

Tantas estórias… 

Fato é que, criança, após essas andanças, cuidados e tanto afeto, mal chegávamos, eu saia correndo e só voltava à base de ameaça de umas boas chineladas. Pai e mãe eram apenas meus cuidadores. Claro que eu os amava; criança ama natural e displicentemente, porém. Nem conta se dá do amor que sente: a felicidade, quando presente, distrai o amor da criança. Meu negócio era a molecada e a rua. 

Quando a adolescência chegou trouxe-me as namoradas. Meus pais, agora, eram coadjuvantes. Casei-me e tive filhos cedo e fui cuidar dos meus. Meus pais? Visitava-os e com eles almoçava em um ou outro final de semana. 

Pais são imaculados e heróis; preocupar-se com eles, sempre, parecia-me não ser preciso. Seguia a vida acreditando que meus pais usavam capas e, talvez, tomassem algum elixir que lhes trouxesse a eternidade e, portanto, eu não tinha com o quê me preocupar. Envelhecer não aconteceria com eles. Fui seguindo…

Adulto, alguns avisos começaram a tirar meu sono mostrando-me que andar pelo tempo é ir direto em direção à ausência precipitando-se à saudade. 

Aquela estória de que o tempo passa rapidamente é um equívoco. O tempo não passa, nós passamos por ele. Displicentes deixamos de ler os sinais ao caminharmos. Nessa toada inventamos a cronologia, apelidando o tempo: de futuro para sublimar a trilha árdua que, sabemos, a vida nos apresenta, chamando a esperança para nos acompanhar; de passado para justificar nossa vulnerabilidade e tentarmos nos conformar, treinando nossa resiliência. Certo é que só no presente é que se é possível viver. Nosso tempo e espaço estão nele. Não se pode viver no futuro e, tão pouco, no passado. 

Meu querido pai o perdi há alguns anos e, agora, nada posso mais fazer. As profundas rugas de minha querida mãe estampam a realidade nua e crua do presente em que ainda vive. Sua inteligência resiste à sua decrepitude galopante que, a passos largos e de mãos dadas com a senilidade , leva-a ao ocaso de seus dias…

A solidão aproveita e se instala sem pedir licença, trazendo consigo a depressão e o medo da finitude.

Altiva minha mãe viveu sua vida impondo e radiando energia. Sua alegria sempre contagiava a todos e ela sublimava a vida com festas de aniversários, almoços para parentes, amigos e solidariedade aos vizinhos. Meu pai, recatado, vivia em meio a essa balbúrdia gostosa e morreu, pela esposa, apaixonado.

Hoje, sozinha, minha mãe sofre em viver seu presente com seu corpo defenecendo.

Tento um assunto qualquer e ela volta ao passado que não pode mais viver. Imagino ela pensando no futuro cujo retrato não lhe permite mais sonhar. Sem saber que o tempo não passa, caminha frágil e, bravamente, ainda luta. Em breve ela não terá mais o presente para dar seus passos e viver. Seu olhar cansado esboça certo otimismo; prestando atenção, porém, percebo que é a esperança que vem como um respirar fundo à procura de ar para se manter viva..

Eu continuo a cuidar da minha vida e a visitar minha mãe um domingo ou outro; por vezes, vou em seu socorro quando sua fragilidade grita mais alto. Tem sido mais frequente…

Eu espio por aí e vejo minha estória se repetindo com tantos outros. Caminho, velozmente, pelo presente, não alcançando, porém, minha querida mãe; ela (e quem sabe outras mães?)tem sido muito mais rápida, deixando-me a sensação de que , egoistas, negligentes ou ambos,não aproveitamos nossos pais…

Alexandre

28/06/2020

Um humanista um pouco bravo.

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