Crônica

A Tourada.

Em Madri, decidimos assistir a uma tourada. Tourada é uma coisa que, parece, estar em nosso imaginário e que só existe em filmes. Por isso, curiosa e quase desconhecida para mim.

Um conhecido espanhol, há anos atrás, me disse que fora os espanhóis nativos, a maioria das pessoas acha uma crueldade esta atração. No entanto, trata-se, disse ele, de uma uma questão cultural que deve ser cultuada, mantida e reverenciada em seu país e, quiçá, no mundo. Não pude concordar nem discordar, pois nunca havia visto, digamos … ao vivo, este evento.

Uau!!! Só de lembrar me arrepia. O tal hispânico sabia o quê estava falando e o quê queria defender. Mas…

Fato é que a natureza humana é mesmo de lascar de crueldade, e chega a ser, quase, surpreendente o quanto gostamos de malevolência. 

Ingresso comprado, sentamo-nos eu e um amigo, na arquibancada em frente à tribuna de honra, sem que eu tivesse a menor ideia do que fosse aquilo. 

Primeiro touro: chocante!

O bicho guerreiro, desprovido de qualquer sinal de rasa inteligência, desembestado, entra na arena e parte para cima dos ajudantes de toureiro, já apostos. Estes, com capas vermelhas, provocam o animal e o obrigam à uma disputa inglória e covarde. É a inteligência em tropa e, treinada para matar, contra um animal desorientado a seguir apenas seus instintos rudimentares de sobrevivência cujos ataque e força são suas absoluta e única defesas. 

Cansam o touro endiabrado a prepará-lo para, diminuída sua potência, entregá-lo ao picador (cavaleiro), montando um enorme e bonito cavalo, com uma armadura medieval de proteção.

É uma cena épica: sem hesitar o bicho parte para chifrar aquela ferragem pesada que, bravamente, o cavalo carrega, de seu dorso até as patas, a protegê-lo daquela massa enorme que o empurra com os córneos.

O boi valente apunhala o equino com tanta força e virilidade que, parece, nos tragar para dentro de suas entranhas através do branco de seus olhos esbugalhados. Seu ódio transpassa de seu interior para a agudeza de seu corno engastalhado na malha metálica do reluzente cavalo. É possível escutar o som dos chavelhos batendo contra a ferragem da armadura do imponente corcel adversário.

Ao mesmo tempo, o cavaleiro, elegante, por sua vez, num ato muito bem premeditado, com destreza e coragem, enfia no dorso do bruto, de olhos saltados, bem próximo ao seu cupim, uma lança comprida – com 2,60 m – que o fere de morte. 

O brutamonte, agora, está desesperado, com dor e raivoso. Sua luta é o início do fim. O sangue jorra pelo couro furado e dilacerado, ferido pelo espeto cumprido. É um sangue cujo vermelho, para mim, pareceu-me, eu nunca ter visto em toda minha vida. É como um vulcão em erupção esguichando labaredas de glóbulos vermelhos por cima da lombada larga do animal enorme, forte, viril e valente.

O rito de preparação à morte continua. O ser irracional é atraído novamente para o cavalo de ferro e, com rapidez e força, o picador, espeta-lhe mais quatro bandarilhas, deixando-o, já, cambaleante.

No meio da arena o toureiro, esse sim, o grande protagonista da tarde, cumpre todo um ritual com os seus ajudantes, com o público e com a tribuna de honra, formada por senhores que decidirão se validam as honras dos pagantes pelo êxito do espadachim de touro: ferir de morte e derrubar o quadrúpede gigante em um único golpe com a espada em suas “costas”, levando-o ao encontro definitivo e sem mais sofrimento à morte.

A manifestação do público congratulando o matador dar-se-á acenando lenços brancos e aos gritos para os juízes da tribuna. Na maioria das vezes, entretanto, o bicho sofre, ao não ser acertado em cheio e, portanto, sem morrer na hora. Pois a que se mirar e acertar um golpe perfeito e com força suficiente para fazê-lo sucumbir. É como se se tivesse que acertar um tiro sobre o outro acertando o segundo no mesmo furo feito pelo primeiro. É a medalha de ouro no tiro ao alvo de uma olimpíada. Caso contrário o sofrimento continua por vários minutos. Nesse ato as chances de ambos, toureiro e touro, quase que se igualam, porque o risco para o matador aumenta com a luta pela sobrevivência do animal que o ataca, duramente, até não mais poder.

Face a face o exímio matador encara a fera furiosa e a espera atacar. Seria elegante demais se a morte não nos mostrasse sua cara de deboche e poder ao derrubar de forma impiedosa aquela máquina de músculos, carne, vísceras e sangue.

A morte parece regozijar-se de seu derradeiro ato e altivez. É o poder absoluto a gozar da vida. E a morte é tão sábia que deixa-nos claro que nesse embate, ao menos um irá sucumbir à sua poderosa vontade de aniquilar com a vida: toureiro ou touro.

A elegância do toureiro matador – cuja coreografia assemelha-se a um bailarino de tango – com sua rica e bela indumentária, contrasta com a cena de um monstro de 630 quilos, não obstante, belíssimo, sendo subjugado e humilhado de forma inconteste.

Como tudo na vida, porém, há bailarinos e bailarinos; assim como toureiros e toureiros. No último touro, um deus misericordioso entra na arena e, com seu poder e habilidade, nos demonstra que a disputa pode ser menos pérfida. Afinal “só o inimigo não nos trai”. Assim, um final menos infeliz para um grandioso animal assistimos: o toureador acerta em cheio o dorso da fera que se ajoelha, na hora, e curva-se ao final inevitável a caminho reto para seu passamento. O público delira. 

A morte agora me pareceu bonita, elegante, menos cruel e, absolutamente objetiva e pragmática. Lenços sacodem-se no ar e à tribuna de honra, que, sua função agora entendo, não resta alternativa a não ser validar a vontade de todos: encher de glória o toureiro especialista em matar. O orgulho explode no peito estufado do deus espanhol que decide em um único golpe que aquele bicho não mais existirá. El vencedor.

Saímos da plaza dos touros meio que atordoados pelo espetáculo bipolar entre o bonito e o feio, o cruel e o redentor, entre a vida e a morte, e fomos embora, mudos, rumo ao hotel; quem sabe com qual sentimento exatamente. 

Passados alguns anos, ainda hoje, não consigo saber minha sensação frente àquele espetáculo de morte. A não ser o quanto o homem pode ser demasiado cruel…

Quanto àquele espanhol, não sei dizê-lo. Bem que poderia levar uma dessa chifrada, ou da outra, para ver o que é bom!

Alexandre

10/06/20

Um humanista um pouco bravo.

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