A verdade e o espelho
Fosse possível a verdade olhar-se no espelho, e a ele perguntar: espelho, espelho meu; existe algo mais verdadeiro do que eu? O que o reluzente objeto poderia dizer-lhe?
Acaso, em voz, o reflexo respondesse, poderia expressar a conhecida citação do grande existencialista Fiodor Dostoievski: “A verdadeira verdade é sempre inverossímil; para lhe dar verosimilhança é preciso misturar-lhe um pouco de mentira.”
Há que se lembrar da natureza humana e sua capacidade, desconfiada, de acreditar. São Tomé nos ensinou a não crer no que não vemos e Santo Agostinho tratou de nos instruir à crença, significando seja a fé a certeza naquilo que não se vê.
Num plano mais terreno, a verdade, de chofre, aparenta uma ideia, às vezes, não possível – ou seja – não se parece ser fidedigna. Se, e quando, ela nos aguilhoa, fere-nos de morte; por certo a incredulidade nos socorre, tampando nosso olhos e sentidos, evitando, ou, mínima e temporariamente, afastando-nos do sofrimento do que é real e, por vezes, desagradável à luz do nosso conhecimento mais íntimo e não querido seja revelado nem mesmo por nós a nós mesmos.
Encarar a verdade é tarefa nem sempre tranquila para a alma. A frase “espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu”, dita pela rainha má, no conto de fadas Branca de Neve – revela, por primeiro, uma resposta tergiversante, que busca a verossimilhança, na medida em que compara a beleza de outras lindas mulheres com a rainha má, fazendo-a acreditar ser a mais bonita do que as tais tão lindas. O conto ensina logo cedo a pequeninos seres, não sem querer, que uma mentirinha, vez por outra, pode ser auspiciosa (é possível vivermos sem mentir?). O que poderia, afinal, acontecer com o pobre humanizado espelho caso contasse a verdade sobre a tal rainha, a saber, ser Branca de Neve a mais bela de todas?
No caso, histórico, não é que a verdade seja inverossímil, pois que o espelho mente, ocultando a verdade. No entanto, corroborando com Dostoiévski, inverto o sentido de sua citação, colocando a mentira como protagonista: a verdadeira mentira é inverossímil, precisa de um pouco de verdade para ser crível.
Estejamos falando da verdade ou da mentira, o intento de se querer seja plausível, acreditável, determinado fato, o será na medida em que se use uma ou outra – verdade ou mentira – para se lograr êxito no que se quer fazer acreditar.
Será que para o romancista russo, mentira e verdade são como a mágica, não importa o quanto existe de cada uma, o importante é convencer?
Estará a verdade num espelho mudo a refletir, apenas, nosso embuste, deixando de nos falar a verdadeira verdade para escamotear nossa dor? Ou esperto, o reflexo, nos acaricia a alma com a verdade inverossímil, fazendo com que a dúvida seja nossa aliada?
Pelo sim, pelo não, talvez para Dostoievski, uma não existe sem a outra (…”é preciso misturar-lhe um pouco de mentira…”), porque no fundo de nossas almas, lá nas entranhas do nosso desconhecido, somos, verdadeiramente, seres sem fé!