Preconceito
Quando tocamos em algum assunto meio espinhoso, em qualquer área humana, podemos observar velado desconforto a respeito. Muitas pessoas tendem a negar a realidade utilizando subterfúgios – num contorcionismo de ações, palavras ou até de silêncio – na ânsia de livrá-las da saia justa. Incluo-me nessas tentativas; por vezes fundadas na hipocrisia, outras na ignorância ou ainda na falta de capacidade, em muitos casos, de lidar com o que chamo de verdades duras!
A pergunta é: por que não as encaramos?
Seres racionais que somos, nos camuflamos e nos escondemos atrás de escudos imaginários (desrazão?). Abraçamos a sublimação como nossa tábua de salvação e seguimos firmes em nossa capacidade de dissimular o que é real.
Um bom exemplo é o preconceito: verdade inconteste! O negacionismo vem de carona e é uma dessas proteções que inventamos e usamos como um campo de força para nos salvar daquilo que imaginamos nos agredir.
Em movimento articuladamente pendular, nos debatemos de lado a outro entre o politicamente correto e a exclusão de quem não é “igual” ou parecido conosco.
Não há lugar para diferenças em nossa sociedade. Nosso racional é desenvolvido do ponto de vista de nossa realidade particular. Vivemos em bolhas…
O bullying, instrumento do preconceito, oportunista, se agiganta nesse contexto. Desconfio de que o bullying desempenha, de forma cruel, o papel de afastar a “ameaça” daquele que de nós destoa, seja pela raça, religião, crença, gênero etc. Pois, ao subjugar, ironizar ou humilhar o outro, afastamos a fake ameaça dos que são, por nós, entendidos como não iguais. Por incapacidade e medo de aceitarmos o desigual, quando não por sadismo, o refutamos.
Será que temos receio de que aquele que não nos espelha se revele melhor do que somos? Se sim, não seria o bullying uma cruel mas poderosa arma? E o preconceito não seria o antídoto para que o “dessemelhante” não nos atinja? Seriam, ambos, a cruz e o alho a afastar, literalmente, nossos pescoços da dentada do vampiro, como no filme de Bram Stocker…
A verdade dura, como espelho reflete nossos medos e incapacidades. Melhor, então, não tê-lo, cobri-lo ou quebrá-lo, ante a encararmos nossas fragilidades irracionais… é só abrir nossa caixa de ferramentas e sacar o preconceito como prego e o bullying para martelá-lo…
Adentro um campo minado, certo de que o tema é polêmico. Minha reflexão, porém, é a minha verdade e não a verdade absoluta. Logo, observo que aceito o debate honesto, genuíno, agregador, cujo objetivo seja trazer luz a este insano sentimento de repulsa ao outro.
Restringirei aqui, no entanto, a discussão referente ao preconceito relativo à cor de pele – ao negro – propriamente. Essa chaga nojenta, que há séculos, fere de morte, por meio de arma branca, literalmente, na maioria das vezes.
Começo com uma afirmação reveladora: tenho preconceito!
Com isto expurgo pelo menos uma das terríveis mazelas humanas: a hipocrisia. Para tanto, conto uma pequena história, enfrentando, corajosamente, o assunto.
Há cerca de quinze anos, dei conta do quão preconceituoso eu sou. A história é real: parei no semáforo, um menino, contava ele com uns oito anos, pediu- me algo. O garoto era negro! Olhei aquele moleque com desdém e, mal olhei, negando-lhe o que ele havia me pedido, seja lá o que fosse, pois nem sei o quê; não abaixei o vidro para poder ouvi-lo e dar-lhe ao menos a não exclusão.
Por ironia do destino, alguns semáforos mais à frente, paro. Desta vez uma menina, faixa etária próxima a do primeiro pedinte, encosta no meu vidro do carro. A menina era loira de olhos azuis. Suja. Num reflexo instintivo abaixei meu vidro e dei àquela menina loira o que não havia dado ao menino negro: inclusão, pois que a atendi.
Alguns quilômetros adiante, caiu-me a ficha; descobri o preconceito que eu imaginava não ter. Senti-me mal e aprendi uma lição sobre mim mesmo.
Verdade dura: sou preconceituoso!
Por que esse preconceito? Não aprendi formalmente isto. Não me lembro de nenhum exemplo de dentro de minha casa (será?). Refleti. A conclusão é óbvia e terrível: o preconceito está tão arraigado entre nós que não o percebemos, tampouco suas nuances: pequenos gestos, alguma piada “inocente” contada em família num almoço de um domingo qualquer…
Minha experiência e descoberta obrigou-me, por dever ético e moral, a admitir esta irracionalidade e rumar para a quebra deste paradigma horroroso. Desde então tenho combatido minha “memória genética” – atitudes, ações, gestos, piadas etc. que me levam ao preconceito – de forma atenta. É, imagino, como combater um vício, ficando em alerta constante: estou há “x” dias sem beber… No caso seria: estou há “x” dias sem expor meu preconceito. Todo cuidado é pouco. Um dia de cada vez… Até que um dia eu possa ter me curado desse terrível sentimento.
Consigo, hoje, perceber o preconceito em filigranas, disfarçado nos fios de ouro do politicamente correto e nos de prata da dissimulação ética e moral em que vivemos.
Como, enfim, nos confrontarmos com as verdades duras como o preconceito submetido à realidade de lentes distorcidas pela alienação social? E essa crueza que é a vida?
Penso em tantas outras verdades duras… Como a própria crueza da vida. Para esta última, minha resposta parcial, duramente trabalhada, é a de jogar fora meus escudos. Encarar meu espelho e enxergar meus defeitos refletidos; mudar… Não tergiversar com o fato nu e cru de que a vida é difícil e de que devemos enfrentá-la. Afinal estamos aqui, saibamos ou não o porquê. E apesar das injustiças, das mazelas incompreensíveis e do motivo desconhecido por nós, decidimos, na maioria das vezes, viver.