E o roteiro? Prego!
Há menos de oito horas para atravessarmos o atlântico Fernando desembarca em São Paulo com Juliana. Uma ligação e quarenta minutos depois estamos no Bixiga. Cantina ótima, comida excelente em grandes companhias: Verena, Bruno e Faé.
Iniciamos nossa jornada com chave-de-ouro. Três garrafas de vinho, massa e um filé mignon feito em nossa frente à beira da mesa, nos despedimos e partimos rumo a Madri. A viagem tinha como roteiro Madri, Roma, Toscana, Veneza, cruzeiro de Veneza a três cidades da Croácia e uma em Montenegro. Em seguida o rumo era Messina, especialmente Taormina, Sicília, Capri; volta a Roma para irmos a Munique, escala para São Paulo. Ufa! Expectativa total.
Check in, polícia federal e pronto: a bordo. Família Fraga em classe executiva, nós… bem, vamos falar da viagem….
Terminado o café da manhã e já para aterrissar em Madri senti que o bicho iria pegar. Um alien se apossou da minha barriga e a dor avisou-me que eu não teria mais tempo. É o que dá viajar de cata-caipira. Fosse junto com o boss, em classe executiva, o coco ainda seria durinho, ah seria… Nada que um vinhozinho junto com um Floratil providenciado pela, sempre atenta e cuidadosa Juliana não resolvesse. Fato é que o trem durou três dias.
Hotel ótimo. Primeira linha. Uma bicheri red wine para mim e outra para o Fernando nos acompanharam até que os quartos ficassem prontos. Saímos para conhecer a cidade. Linda! Sofisticada, limpa e, relativamente, segura. Primeira parada, mercado central São Miguel. Inusitadamente lindo. Comida de todo tipo e, principalmente, em pequenas porções para degustar e beber vinhos. Frutos do mar frescos, queijos, salames, prociutto, tudo de primeira. Algumas taças de vinho a mais e estávamos entrando no clima. Descemos ladeira a baixo e entramos numa rua cheia de restaurantes. Um amigo havia me dito que não poderíamos deixar de almoçar no restaurante mais antigo do mundo segundo o Guiness. Achamo-lo. Seu nome: Boltini, desde 1.725. Simples. Antigo e comida razoável. ¨Está visto¨. Entrou para o nosso particular livro de recordes.
Final de tarde, tourada. A natureza humana é mesmo de lascar de crueldade. Como pertencemos a espécie, adoramos. Primeiro touro: chocante. O bicho é guerreiro, mas desprovido de qualquer sinal de rasa inteligência. Entra na arena e parte para cima dos ajudantes de toureiro, se é que se pode chamar assim. Estes provocam o animal com capas vermelhas e o chamam, literalmente, para o pau. Cansam o infeliz até que um cavaleiro entra em cena com um cavalo enorme vestido com uma armadura de proteção. Sem hesitar o touro parte para chifrar o cavalo que, firme, aguenta aquela massa enorme a empurrá-lo com os córneos. O boi valente esbugalha o olho apunhalando o equino. Seus olhos saltam com tanta força que parece nos fazer enxergar suas vísceras de ódio e, quem sabe, ao mesmo tempo, terror por estar enfrentando sabe-se lá o quê para aquele acéfalo animal. É realmente tudo muito selvagem. O cavaleiro por sua vez num ato muito bem premeditado e treinado, enquanto o touro chifra a armadura do cavalo, enfia em seu dorso, à frente do cupim, uma lança que o fere quase que de morte, deixando-o ainda mais desesperado e raivoso. Sua luta é o início do fim. O sangue jorra pelo furo causado pelo espeto cumprido. É um sangue cujo vermelho, para mim, pareceu-me, eu nunca ter visto em toda minha vida. É como um vulcão em erupção jogando labaredas de globos vermelhos para cima do grande dorso do animal. Animal enorme, forte, viril e valente. Em seguida o rito de morte continua quando o ser irracional é atraído por outro animal, esse racional, que de frente ao touro consegue, com muita habilidade e coragem, espetar mais quatro bandarilhas no dorso do descontrolado e raivoso bicho. Nesse exato momento o toureiro, esse sim, oh cara, cumpre todo um ritual com os demais toureiros-ajudantes, com o público e com a tribuna de honra, formada por senhores que decidirão se validam as honras do público pelo êxito do toureiro que é ferir de morte e derrubar o quadrúpede gigante em um único lance com a espada em seu dorso levando-o ao encontro definitivo e sem mais sofrimento à morte. A manifestação do público congratulando o matador dá-se abanando lenços brancos e aos gritos para os juízes da tribuna. Na maioria das vezes, entretanto, o bicho sofre, pois a que se mirar e acertar um golpe perfeito e com força suficiente para fazê-lo sucumbir. É como se se tivesse que acertar um tiro sobre o outro acertando o segundo no mesmo furo feito pelo primeiro. É a medalha de ouro no tiro ao alvo de uma olimpíada. Caso contrário o sofrimento continua por vários minutos. Nesse ato as chances de ambos, toureiro e touro, quase que se igualam, pois o risco para o matador é enorme. Face a face ele encara o monstro furioso e o espera atacar. Seria elegante demais se a morte não nos mostrasse sua cara de deboche e poder ao derrubar de forma impiedosa aquela máquina de músculos, carne, vísceras e sangue. A morte parece regozijar-se de seu derradeiro ato e altivez. É o poder absoluto a gozar da vida. E a morte é tão sábia que deixa-nos claro que nesse embate, ao menos um irá sucumbir à sua poderosa vontade de aniquilar com a vida, toureiro ou touro. A elegância do toureiro matador contrasta com a cena de um touro de 630 quilos sendo subjugado e humilhado de forma inconteste.
Ao menos um final menos infeliz para o touro, assistimos. O toureiro acertou em cheio o dorso do animal que ajoelhou na hora e curvou-se ao final inevitável a caminho reto para a morte. O público delirou. A morte agora me pareceu bonita, elegante, menos cruel e, absolutamente objetiva. Lenços sacudiram-se no ar e à tribuna de honra não restou alternativa a não ser validar a vontade de todos. O orgulho explodiu no peito estufado do deus espanhol que decidiu em um único golpe que aquele bicho não mais existiria. El vencedor.
Saímos da plaza dos touros meio que atordoados pelo espetáculo bipolar entre o bonito e o feio, o cruel e o redentor, entre a vida e a morte e fomos embora rumo ao hotel, quem sabe com qual sentimento exatamente.
Encontramos as meninas que, ao preservarem seus sentimentos, não quiseram saber dos nossos em relação ao duelo entre os animais. Calamo-nos.
À noite jantar no restaurante Il Salotto, indicado pelo concierge do hotel. Simpático, pequeno, ótima comida e barato. Minha surpresa, porém, se deu ao visitar o banheiro. Encontrei uma foto linda da deusa de todas as atrizes de Hollywood, Sofia Loren. A diva estava de espartilho preto com uma das pernas sobre um bidé mostrando um perfil esguio, quadril largo, cintura fina enfim um corpo único. Lembrei-me de como eu visitava meu banheiro na adolescência… Outras fotos havia, mas eu não as vi.
Juliana e Solange comeram um tartá de salmão e mozzarella de búfala, espetacular. Eu e Fernando só nos lembramos do vinho.
Dia seguinte partimos para a verdadeira excursão dos turistas: ônibus – double decker – aqueles abertos em cima, coloridos e cheio de propaganda da cidade. O passeio restou olhar vários monumentos até trocarmos de linha e partirmos para o estádio Santiago de Bernabeu, aquele do Real Madrid. Impressionante. Épico, imponente, mas nada suntuoso; até mesmo velho. Vimos tudo. Vestiário, campo etc. O museu que guarda a galeria de troféus é contemporâneo e muito sofisticado mostrando força, poder e, certamente, o volume de euros que rolam nos bastidores. Os jogadores são verdadeiros deuses expostos como aqueles monumentos que havíamos visto e veríamos em toda a viagem. Não se poderia ir a Madri sem visitarmos aquele templo. Real Madrid, poder real.
Fim da visita, uma olhadela no livro de restaurantes mais recomendados pelo Boni e Ricardo Amaral e bingo. Longe e de pobre aparência, com dúvidas, entramos. Primeiro pedido um Rioja. Pode-se pedir qualquer um que é bom e, na maioria das vezes, barato. Duas diferentes saborosas paellas foram nosso delírio. Uma paella de frutos do mar e outra, idem, porém caldosa. Aprendi mais uma com o viajado Fernando. Caldosa é a paella com mais caldo. Bão também. Fernando mostrou ao gerente do restaurante o livro que o havia indicado deixando-o orgulhoso pelo feito.
Próximo evento seria uma visita ao tal Museu do Prado. À porta, eu e Fernando demos meia volta e saímos a procurar alguma mesa que fosse a nos servir mais um Rioja. As meninas meio contrariadas pela falta de nossa companhia seguiram rumo aos quadros do Picasso. Nosso erudito Fernando, antes, porém, fez um alerta às duas: “Não confundir a grande obra do mestre Picasso com a pica de aço do mestre de obras”…. Genuíno não é, mas partindo dele foi o suficiente para quebrar o clima e deixar tudo combinado: às mulheres, museu; aos homens, vinho. Adiamo. Dois razoáveis lances de escadas depois, olhei para a esquerda e vi o Ritz na esquina. Não pisquei os olhos para imaginar eu e Fernando em Madri no Ritz tomando vinho sem fazer nada em plena segunda-feira. Ricos, não? Ao menos de alma, graças a Deus. Bati os olhos no garçom e vi Al Pacino em Poderoso Chefão. A cara. Escarrado. Duas garrafas de vinho depois e estávamos tirando foto com nosso hollywoodiano de araque, mas muito simpático que entrou na pilha conosco, fazendo jus a alguns euros de gorjeta. Mereceu pelo atendimento e simpatia. O lugar bonito, sofisticado. Em cima, em um saguão, em uma das entradas para o salão interno do hotel, um elegante pianista tocando e, claro, pondo o Fernando a salivar por uma palinha, cuja canção, ganhará uma viagem a Síria só de ida quem descobrir qual a música seria que nosso Sinatra pensava.
Deu no que deu. O “And Now” espargiu no ar saindo da voz do nosso trovador para os aplausos de alguns hóspedes do chá da tarde. Para nós, vinho da tarde, é claro.
Dois charutos coroaram aquela tarde no Ritz. Tarde do nosso primeiro fogo, afinal ninguém é de ferro. Embora, havíamos combinado de não exagerar a véspera da ida para Roma que se daria num voo muito cedo. Começamos, pela manhã, perdendo o transfer que não hesitou em nos deixar a ver navios. Jeito não dá, jeito está dado. Fomos às pressas de táxi para o aeroporto a tempo de pegar o avião para a tão sonhada Roma. Um cochilo depois, pronto, chegamos. A cidade dos deuses e grandes imperadores não tardou a nos apresentar suas mazelas. Deparamo-nos com o caos italiano adornado por um idioma gritado, gesticulado e convulsionado por uma turba de gente no aeroporto que nos deixou atônitos. Muita gente. Tudo muito apertado. Tudo muito estridente. Definitivamente Roma não nasceu para ser um lugar cuja paz poderia ousar se impor. O dia era de greve. Policiais abandonaram seus postos e o congestionamento começou na saída do aeroporto após já termos esperado por, pelo menos uma hora, nosso transfer que nos levaria ao nosso destino: Hotel Jumeirah na importante e chic Via Venetto. A localização não poderia ser melhor. Após desanimado e infinito trajeto desembarcamos. Hotel de primeira linha, mas não aconchegante. Roma surpreendia negativamente. Não nos entregamos. Malas no quarto, partimos para a cidade divina.
Nosso guia, aquele viajado, Fernando, que já não se lembra de quantas vezes esteve com Juliana na cidade templo, dirigiu-nos pela Piazza de Espanha. Linda. Aos seus pés uma escadaria point para turistas, namorados e transeuntes em geral que lá param para nada fazer a não ser contemplar ao redor, ver o lindo pôr do sol e jogar conversa fora. Fotos. De lá partimos pela Via Condotti, rua famosa de grifes. Andiamo. Gente. Muita gente.
Da Condotti descemos a Via Del Corso e pelo trajeto vários monumentos, parecem, nascidos pelas ruas e lá até hoje eternizados como a nos indicar que nunca estivemos sós nesse mundão de meu Deus. Alguns minutos depois e, imponente, a nos dar boas vindas, de repente, o Pantheon. Estávamos, definitivamente, em Roma.
São mais de dois mil anos a se apresentarem para nós e, parece, a querer nos provar que lá o mundo nasceu. Inacreditável. Está lá. Imponentemente grandioso a nos colocar em nosso insignificante lugar na história. Somos, aos seus pés, não mais que coadjuvantes. À sua porta ficamos pequenos e em seu interior, minúsculos.
A história nos alimenta a imaginação, as crenças e, até mesmo, as descrenças. Coisa do homem, mas que nos faz lembrar de Deus. Certamente coisa de Deus, que criou e nos faz lembrar do homem. Que homens eram aqueles? Que homens somos nós? Será o mesmo Deus?
Fome! Já era hora. Todos estavam com fome, mas só a Juliana teve coragem de nos lembrar. Talvez porque estávamos alucinados pelo que havíamos visto e pelo que estávamos por ver. Sentamos. Rua simpática de vários restaurantes. E escolhemos. Sim, escolhemos. Escolhemos mal. Horrível. Melhor pularmos esse episódio.
Tudo certo, não seria um restaurantezinho de merda que nos tiraria a emoção. Nosso guia trovador nos levou a Piazza Navona. Lá soubemos, pelo nosso erudito companheiro de viagem, o tal trovador, Fernando, que ficava a embaixada do Brasil e que lá ficará nosso poliglota embaixador Itamar Franco. Brincadeiras à parte o homem tinha lá o seu valor. Morreu pobre, mas pela sua residência em Roma, viveu bem. A praça é linda e seria épica se a prefeitura de Roma tivesse a coragem de abolir os camelôs que aos montes atrapalham a paisagem, os monumentos e nossa emoção. Em um dos restaurantes descansamos nossas cadeiras doloridas de tanto andar. Por alguns minutos fiquei do lado de fora por não poder entrar tomando um gelato que vinha lambendo aos poucos para não acabar de tão gostoso. Uma bicheri, capuchino, doces e ciao.
Il conto, pedimos ao ragazzo. Pagamos e partimos para uma das nossas maiores expectativas: Fotana de Trevi. Roma se empunha novamente. Soberana. A fonte é soberba e inexplicavelmente profunda. Parece-nos querer dizer alguma coisa. Contar um segredo. Dizer que realmente existe, mas disfarçar-se como uma miragem que engana o andarilho no deserto, saciando sua sede sem que ele tome uma gota de água se quer. É a armadilha definitiva para nos prender ao encanto romano.
O sol piscava para o entardecer convidando a noite a vir nos dar boas-vindas e a nos lembrar de que era hora de uma pequena pausa. O mal humorado taxista achou que dez euros seria a senha para não nos encorajar a subir a Via Venetto de carro percorrendo apenas três ou quatro quadras. Demos de ombros e pagamos. O cansaço nos apunhalava as panturrilhas e o calcanhar respondia gritando a hora de parar. Banho, escalda pé e prontos estávamos novamente.
Igualmente aos monumentos históricos, para nós uma boa comida e um ótimo vinho são sinônimos de grandeza e nos recarrega de toda energia necessária à viagem. Fernando volta ao livro de restaurantes recomendados e escolhe Trattoria da Cesare al Casaletto de Leonardo Vignoli. Fosse ator poderia esse chef ser chamado de Leonardo de Caprio e estaria eternizado na calçada da fama junto a Marlon Brandon, Sofia Loren, Denzel Washington e todos os grandes que existem e que já passaram por nós.
Entradas inacreditáveis: croquete de berinjela all’arrabbiata e Polpette de bollito com pesto de manjericão, que jamais experimentei em toda minha existência e como diz o próprio autor do livro: “impossível não ser feliz”. Como primi piati pedi um massa e trouxeram-me uma ópera prima. Caso me contassem, eu acreditaria ter sido feita por um famoso chef renascentista chamado Michelangelo e que o outro, das artes, esculturas etc, não havia existido. A divina massa alho e óleo com aliche e azeite de primeira certamente era servida no Pantheon todas as sextas-feiras até a queda do império. Já a massa a matriciana pedida pelo Fernando era saboreada aos sábados e feito por aquele mesmo mestre que só tirava folgas às segundas. O peixe pedido pela Juliana e Solange fora feito pelo primeiro assistente de cozinha de Michelangelo, o próprio Leonardo Vignoli, e estava ótimo. Dessa vez o Brunello de Montalcino, acreditem, foi coadjuvante.
Dia seguinte não poderíamos deixar de usar nossa limusine doble decker e ir direto ao magnífico Coliseu. Não estou certo de que esse adjetivo possa traduzir o que aquela arena significou e, certamente, significa para a humanidade até hoje. Dentro dela é possível, porém, imaginar do quê o homem é capaz. A imponência das arquibancadas, obviamente, já destruídas e por isso em ruínas, nos traduz o que era ser um gladiador e superar desafios. Só quem vive de salário mínimo e sustenta meia dúzia de filhos para entender. Havia toda uma divisão por castas. Quanto pior as classes sociais mais ao alto se posicionavam as pessoas. O imperador ficava ao centro no portão principal, de quatro portões. Um portão era usado pelo público em geral, o outro pelos senadores, o último pelos gladiadores. Os animais que digladiavam com os grandes lutadores eram importados da África e se alojavam embaixo do tablado central do Coliseu. Ao imperador era dado o poder de decidir pela vida ou pela morte do gladiador. Mas ao contrário do que todos pensam, e os filmes nos fazem acreditar, o dedo polegar para baixo não era o sinal indicativo para o assassinato e sim o passar transversalmente do polegar pela garganta a indicar a degola como sentença de morte do pobre homem cuja humilhação já seria suficiente para se-lhe-confirmar seu destino.
De César o quê é de César. Do mundo é o Coliseu e sua história.
Voltamos à limusine e nos colocamos a procurar um restaurante. Dessa vez Fernando procura por uma galeria no Google Maps que nos indica estarmos a zero quilômetro. Olhamos em volta e um passo e meio depois, sem que pudéssemos premeditar, estávamos em frente à mesma. Restaurante muito bom com mesas expostas na galeria. Servimo-nos bem de comida e vinho. Tudo certo até que um velho poeta nos aborda oferecendo seu livro de poesias por dez euros. Fernando, como, sempre, menos pela arte de rua, e mais pelo altruísmo, compra. Duas horas depois, no táxi, Solange dá conta de que estava sem o celular.
E agora José? Diria Drummond. E agora Solange. Dissemos nós? “Mole”. “Compro outro”. Dando de ombros ela nos respondeu lívida, sem pestanejar. Ficou a pergunta: O poeta era o ladrão? Não Drummond, por óbvio, mas o outro.
Ainda não havíamos percebido, mas como um fantasma a roçar nossas nucas, algo soava estranho. Andamos pela Via Condotti, passamos pela Del Corso, estávamos em Roma e nada? Nenhum euro gasto? Nada de compras? Uau… Que magia… Serão os deuses a nos lembrar de que existe vida sem consumo? A arte, a história, o místico, o diferente em nosso íntimo conhecido estariam regulando nossas lentes para o mais belo, para o eterno? (Interessante, pois me lembrei do meu projeto de livro de quase poesias. Não é que rimei sem querer fazê-lo?).
Ah… de repente, não mais que de repente, eis que o fantasma a nos cutucar personifica-se e surge em carne e osso e alguns quilinhos a mais. Aquele que não pergunta preço. Aquele que é mais rápido no gatilho do que Terence Hill e Bud Spencer: Don Ferdnando. Mira em perspectivas todas as lojas da Del Corso. Escolhe uma e atira. Ops, entra. Don Ferdnando não perdoa, mata. Num único movimento compra sapato, camisas e num ato de misericórdia, visto em poucos cawboys, escolhe um sapato para Juliana. Mas cuidado. Não é um sapato qualquer. É o mais moderno dos modernos. O mais brilhante dos brilhantes. O mais, mais de todos. Branco e rosa, rosa e branco. Não importa. É oh sapato. Juliana olha o regalo. Cada pupila uma interrogação. Será? Volta seu olhar para o destemido e forasteiro aos italianos, suspira e diz: Fê… “Juliana compra”. “É lindo”. “É esse”. Foi ele quem disse. Está dito. Mas Juliana está em companhia dos deuses. Está em Roma. Olha em torno e encontra sua amiga que, de cara já lhe diz que não gostou. Pronto. O Pantheon tremeu. Fernando pagou e saímos. Dia seguinte Juliana estava linda com seu sapato bicolor a coroar seus pés. Para surpresa de todos e orgulho do marido, extasiada e entusiasmada, disse: “Gente… não é que adorei esse sapato?! Numa pergunta afirmativa. E completa: “Cê gostou Sol? Saia justa… mas a escudeira fiel habilmente, ainda que sem convicção, responde que sim e tudo acaba bem. Era uma homenagem ao Papa. Dia seguinte era dia de visitarmos o Vaticano.
Entre dois dias, entretanto, há uma noite. Como tal há de haver um jantar. Mais uma recomendação e descobrimos o All’Oro, do chef Ricardo…… um pouco mais sofisticado do que os anteriores. Atendimento excelente. Silencioso, a meia luz, som de fundo. Elegante. Para a entrada um finíssimo e charmoso souflè de bacalhau. Em seguida uma massa absurdamente leve, exótica e diferente que explodia, literalmente na boca. Chiantti, três. Para esses restaurantes recomendados sugeri ao Fernando que pegasse a assinatura do chef, pois conversava com todos explicando sobre o livro e a recomendação, para orgulho deles. Nesse caso o chef Ricardo ficou tão orgulhoso que quis entrar em contato com o Boni para agradecer. Ficamos de arrumar o e-mail e enviar a ele, sem antes, porém, pedirmos para que ele citasse que havia sido o Fernando da Ferreira e Chagas Advogados que falou a respeito e de um convite que fiz para que ele, Ricardo, abrisse um restaurante no Brasil. Por óbvio que o capitalista da empreitada estava ao meu lado. Nessa noite tomamos nosso segundo porre.
Dia seguinte. Vaticano. Fernando e Juliana dormiram até mais tarde. Eu e Solange fomos à procura do celular perdido ou roubado, nunca saberemos ao certo. Nossa esperança era de que pudéssemos ter esquecido no restaurante da galeria ou em alguma loja por perto. Vasculhamos tudo e nada. Poeta filho da mãe…. Será mesmo que foi ele a surrupiar o aparelho da maça mordida?
Quer saber? Bora para pedir a benção ao velhinho de branco. Rumamos para o Vaticano. Agora tenho certeza do que a igreja católica é capaz. Edir Macedo é um mísero inseto perto de uma instituição milenar como essa. A comparação é esdruxula, por certo. Mas refiro-me ao que sempre nos incomoda quando o milionário bispo aparece e demonstra uma riqueza enorme. Haja sacolinha para sustentar tudo isso. Não é a toa que o Vaticano é um país. Os números, que não me lembro, são absurdos de tão grandes. Tem mais empregados cuidando de todo o staff papal do que o próprio staff. É, certamente, o Vaticano a caricatura do poder. Não há nada que aparente mais poder do que aquilo, a não ser o Foça One do Tio San. Of course.
Por outra lupa é possível ver maravilhas feita pelo homem, como a Capela Sistina. Pintada durante quatro anos por ninguém menos que Michelangelo que, detalhe, pintor não era. Mas aceitou o desafio e por todo esse tempo morou dentro da capela que encanta ao mundo até hoje. Descrever o Vaticano e toda sua história e atmosfera seria um trabalho michelangesco, cujo esforço e memória eu não os tenho, depois de tantos lugares que passamos e de tantas coisas que vimos e vivemos nessa andança de férias pela Europa. Um detalhe inesquecível, porém, e triste, foi que à saída do Vaticano nos deparamos com uma cena que nos deixou, pelo resto do dia, pensativos e nos ofuscou a alegria. Uma moça de mais ou menos trinta anos estava morta em plena Praça de São Pedro aos pés da entrada do Vaticano. Uma cena bizarra, pois ela parecia estar apenas deitada, não fosse pelos olhos estatelados e o corpo branco e duro estendido no chão. Tomara que, pelo menos, o Papa tenha tido notícia de tal infortúnio e a tenha abençoado e encaminhado sua alma aos céus.
Um telefonema e alguns minutos mais tarde encontramo-nos com Fernando e Juliana. Fernando estava destruído por conta da comida do Ricardão. Calma… estou falando do chef Ricardo e do jantar da noite anterior. Lembra? Pois é…
O taxista nos sugeriu almoçar no Trastevere. Depois do Rio. Lugar agradabilíssimo e cheio de restaurantes. A nossa cara. Escolhemos um com mesas na rua e que nos pareceu o mais agradável. Pedi a wine list e meu alvo foi um Amarone que, segundo o ragazzo, era o melhor da região. Nessa viagem, entretanto, entendi que os europeus acostumados a beber bons vinhos, não têm a mesma crítica que nós tupiniquins temos quanto a esse assunto. No Brasil quando falamos em vinho, se não conhecemos a bebida de Baco, escolhemos pelo critério preço. Algumas vezes cruzamos uma ou outra informação como preço e safra, produtor e uva etc. Na Itália, por exemplo, o preço é secundário. O padrão de ruim deles começa no nosso ótimo e os preços são próximos. Por isso o melhor Amarone do restaurante era cento e vinte euros. Os demais ficavam entre sessenta e oito e oitenta euros. Preços próximos, não? É outro conceito. Outro padrão. O amigo do Ricardão não bebeu. Coube-me desfrutar quase que sozinho da maravilhosa garrafa.
Táxi e Via Del Corso e Condotti novamente. Fuçar lojas. Quem aguenta não fazer isso nas ruas de grifes mais badaladas de Roma? Fernando não nos acompanhou e eu não me demorei a pegar o rumo do hotel meia hora depois. Juliana e Solange ficaram a bebericar champanhe de loja em loja e a se deliciarem em sonhos de consumo.
Nessa noite decidimos abraçar Morfeu mais cedo. O cansaço começava a nos corroer os ossos e na manhã seguinte rumaríamos cedo para a tão sonhada Toscana. Sanduba no quarto e adeus.
Café tomado eu e Fernando fomos buscar o carro na locadora. Era uma Audi perua. Porta malas nem pensar, não haveria meios de caber nossas bagagens. Doctor, teimoso, paga pra ver. Voltamos e trocamos por um USV da Ford. Maior, mais barato e menos carro. Tudo coube, porém. Bora para nossa cidade sede na Toscana, Siena.
O GPS nos levou por um caminho que, se não era proibido, como não o era, era pavoroso. Ruas estreitas e cheias de gente. Fomos parados por duas vezes pela polícia que ao perceber que éramos turistas nos informou como chegar ao hotel. Que hotel. O melhor de Siena. No meio da cidade terracota encontramos um pequeno palácio. Atendimento ímpar e lindo. O quarto maravilhoso nos mostrava uma vista impressionante. Ao abrir a janela cheguei a pensar estar de frente a uma pintura de Van Gogh. Indescritível. Num lapso de entusiasmo abri um Chiantti e chamei Solange, Juliana e Fernando para brindarmos aquele momento e aquela pintura que podia ser tocada, vivida. Estávamos na Toscana. Minutos depois uma loja de secos e molhados com prociutto, panceta, queijos e vinhos era nossa primeira parada. Meu sommelier particular, Fernando, comprou dois super Toscana. Sassicaia 2001 e 2009 e profetizou que tomaríamos o néctar do deus Baco. Como num efeito Pavlov salivei na mesma hora. Andiamo. Solange encontra o tesouro e parece ter visto Deus. Sem pestanejar compra um par de óculos Tiffany cujo estojo já valia a pena. Lindo. Estava aberta a temporada de compras.
Seguimos para a Duomo. Igreja linda e delicadamente imponente. Uma das igrejas mais bonitas que visitei.
Sentamo-nos na Gran Piazza de Siena em um dos restaurantes charmosos que compunha a atmosfera. Tomamos vinho e comemos aliche, pão com azeite, prociutto etc. Eu não podia acreditar naquilo tudo. Se para a Solange o sonho era Roma, para mim a Toscana era o nirvana. Passeamos até escurecer. Algumas pequenas compras e dois pares de sapatos que arrematei, hotel. Banho tomado, descemos para o restaurante, ao lado do lobby do hotel e Fernando abre a primeira garrafa do poderoso líquido. O garçom que nos atendia suspirou ao ver de que bebida se tratava e depois de nos parabenizar nos trouxe prociutto e pecorino que, não sei os outros, mas eu nunca havia degustado; além de pistache, castanhas e amendoins. Aquele foi o melhor esquenta da viagem, com certeza. Recebemos uma indicação de restaurante e seguimos. Gran Piazza de Siena again. Um restaurante ao lado do outro. O nosso era o Speranza. Ragazza simpaticíssima e atendimento vip. Sentíamos pela primeira vez o gostoso e agradável frio da Toscana. Convite certo para uma sopa com vinho, seguido de uma boa massa italiana com ragu de javali.
De volta ao hotel comentei com Fernando que não poderíamos passar pela Toscana sem ver seu interior e suas paisagens belíssimas de gramados, casas de tijolos à vista, telhados, secos e molhados, aonde eu gostaria de comer salame com pão e beber vinho, ver parreiras de uvas etc. Para minha surpresa, dia seguinte no café da manhã, ele aparece com um roteiro tirado na internet que nos levaria a várias cidades da Toscana por vias vicinais e que, por certo, encontraríamos com meu desejo. Assim fizemos. Fernando ao volante, primeira parada, Castelo Monteriggione. Só vendo para crer. Estrategicamente situado no alto de uma colina o pequeno castelo hoje é um vilarejo que abriga alguns poucos restaurantes, um hotel razoável e pequenas lojinhas de secos e molhados que vendem Chianttis a seis euros. Eu disse seis euros. Um pit stop num restaurante para irmos ao banheiro cuja desculpa foi tomarmos café para ter o benefício de nos aliviarmos. Lugar singular e diferente de tudo que eu já tinha visto. Fiquei imaginando o quanto aquela muralha a cercar o castelo poderia, de fato, defende-lo de invasores. Não devia ser fácil viver naquela época. Hoje, porém, um lugar aprazível, lindo, de paz.
Após belas paisagens chegamos a um dos lugares que entrava com força como um dos mais bonitos da viagem. San Geminiano. À porta da cidade uma parada providencial. Mais alguns segundos e Fernando, que não havia se aliviado no castelo, acabaria por sujar as pantalonas. A estratégia do pit stop de Monteriggione repetiu-se agora, entretanto a desculpa foram duas biqueres de rosso. Aliás, repetimos essa artimanha por toda a viagem. Cada necessidade de banheiro, uma biqueri de vinho. Luta. Imagina o quanto não mijamos. O que chama a atenção é que ao parar em uma espécie de bar para tomar biqueri de vinho, você é servido de prociutto, salame, pão e queijo. Tudo por quatro euros por taça. É o não é o paraíso?
San Geminiano é cercada por uma muralha que, certamente, a protegia de invasores. Portanto a entrada da cidade é por um portão enorme. Dentro encontramos uma cidade vigorosa, de muitos turistas e comércio fortíssimo. Uma das primeiras lojas é de cerâmica, lugar que você encontra tudo quanto é tipo de peça cerâmica. Apaixonante. A vontade é de comprar tudo, de porta- azeite até mesa de jantar, artisticamente pintada com motivos lindos e coloridos, que deixaria qualquer casa maravilhosamente decorada.
O ponto alto da cidade, por incrível que pareça é o gelato. Lá, em San Geminiano, há a melhor sorveteria do mundo, segundo o Guiness. Não é preciso dessa comenda para se descobrir isso, porém. Basta saborear um gelato de lá para que você mesmo o eleja o melhor de todos. Tente imaginar alguma sobremesa, sorvete, pudim, petit gato, sei lá, qualquer doce, quente ou gelado, líquido ou sólido, pastoso, não sei. Imagine. Conseguiu? Pois é, vá até San Geminiano e descubra o quê eu estou falando, pois nenhuma das tentativas acima poderá parecer com o sabor daquele sorvete. Do que temos saudades? Pessoas? Lugares? Animais de estimação? Filhos e pais? Irmãos? Pois bem, eu tenho saudades daquele gelato.
Próxima parada, Firenze. Do mirante a vista é um quadro. O pintor? Deus. Conhece? Pois é…
Fotos, fotos e mais fotos. A vontade de retratar o que se via naquele momento não seria suficiente para mostrar o que vimos. Só indo lá.
Descemos rumo à cidade e entramos. Atravessamos a ponte de Vecchio e não fosse o mirante e tivéssemos chegado pela parte de baixo teríamos um choque. Já andou na vinte e cinco de março em Sampa? Pois bem, à primeira vista, e guardada enormes proporções, é o mesmo que Firenze desse ponto de vista. Lojas, multidão, multidão e lojas. A diferença? Entre em uma joalheria, escolha um relógio e pergunte o preço. A primeira que entramos e que o Fernando perguntou o preço de um relógio foi uma porrada. Vinte e seis mil euros. Como não entendo italiano cheguei a acreditar que o preço era pela loja toda, enfim, o ponto de uma loja em Firenze. Brincadeira, era o relógio mesmo. Fernando que não gosta de perder disse que queria um de ouro e saiu. Nojento. Continuamos e adivinhem… banheiro, biqueri, biqueri, banheiro. Dessa vez pedimos uma garrafa de Chiantti. Chiantti, Barolo, Brunello de Montalcino eram nossas companhias dia e noite. Pobre, não? Lembrem-se, porém, do que eu disse anteriormente. Na Europa isso é normal. Não é coisa de rico.
Lançamos mão mais uma vez do livro daquele que já se tornará nosso amigo íntimo, Boni. O restaurante recomendado desta feita era totalmente diferente de todos. Contemporâneo. Poucas mesas e cozinha integrada com o pequeno salão em que estávamos. Tudo muito moderno e cheio de inox e equipamentos de cozinha sofisticados. Solange, Juliana e eu pedimos a mesma deliciosa massa. Uma para mim e uma para as duas dividirem. Fernando pediu massa com molho e galinha de angola. Brunello. Segundo prato bacalhau, para mim e meninas. Inusitadamente o amante das despenadas pensa em outra ave. Certamente tocado pelo lugar e lugares pelos quais passamos. A lá medieval pede o segundo prato, sem antes, porém, me perguntar se eu o acompanharia. Sem piscar, topei na hora. Peito de pombo. Eu nunca pediria esse prato. Não sou de gostar de aves. Mas estávamos na Toscana, movidos por castelos, muralhas, igrejas etc. Comi. Esqueçam o gelato, minha saudade agora é por aquele pombo…Embora o ideal seria o geladinho de San Geminiano de sobremesa. Aí sim alcançaríamos o nirvana.
Andamos um pouco e decidimos andar de charrete que nos levaria até a Duomo. Essa imensa. Muito bonita. Mas não entramos. Estava lotada.
Lojas e compras. Fernando entra na Prada e escolhe uma pasta linda. Quando a vendedora demora um pouco para fazer o pacote, ele me sai com a seguinte pérola: “Será que você pode acelerar um pouco?” “Estou com horário para o helicóptero e não posso me atrasar”. Foi uma correria só. Eu? Saí de fininho…
Deixamos Firenze satisfeitos e depois de hora e pouco estávamos em Siena novamente. Hora do segundo Sassicaia. Saboreamos em meu quarto olhando para a cidade da minha janela e privilegiadíssima vista.
Decidimos jantar no restaurante do hotel. Agradabilíssimo e de excelente comida. O atendimento dez estrelas. Pego a carta de vinho e bato o olho em um Solaya. Super Toscana. Duzentos e vinte euros. Nessa altura do campeonato receio pela atitude que iria tomar. Hesito. Entrega a carta ao Fernando e peço para ele decidir, sem que eu dê qualquer pista sobre o que eu tinha visto. Fernando olha com vagar. Faz cara de feliz e diz: Tem um vinho aqui… Interrompo-o na hora e digo: É um Solaya. Pode pedir. Eu pago. Afinal ele já tinha bancado dois Sassicaia de não menos porte. Ele quase infarta de alegria. Sua cara transforma-se na felicidade estampada. Sorri como uma criança que acaba de ganhar a tão sonhada bicicleta de Natal. Agradece-me dizendo que gostou da minha atitude. Jantamos. A comida? Nem me lembro. O vinho? Inesquecível. Esqueçam o gelato e o pombo. Minha saudade agora é o tal Solaya. Fernando pede outro. Ele sabe trucar e sua menor carta sempre é o zap. Mas para nosso azar, só havia aquela garrafa. Fazer o quê. Pedimos outro bom vinho. Mas pergunta se me lembro do nome? Demos muita sorte ao pedir o Solaya naquele hotel, pois em vários outros lugares não encontramos por menos de trezentos e cinquenta euros. Em um dos restaurantes que fomos depois, a garrafa era seiscentos e trinta euros. Já pensou se não tivéssemos pedido aquele?
Quando a noite começava a flertar com o dia saímos para Veneza. O motorista agora seria eu. Deixei a Toscana com gosto de quero mais. Por mim ficaria, pelo menos, cinco dias naquelas terras.
De cara a sorte nos acenou discretamente. Não encontramos nosso transfer e cheios de malas estávamos em frente a locadora, que entregamos o carro, pensando o que fazer. Um casal se aproximou e nos deu a dica preciosa. Eram brasileiros e estavam voltando para o Brasil. Pegamos o mesmo carregador de malas deles por setenta euros que nos levou até um táxi lancha que nos levaria ao nosso hotel. Outra boa dica do casal foi nos indicar o hotel Mônaco para almoçarmos. Lugar bonito, boa comida e com uma visão privilegiada do Gran Canal. Da nossa mesa tirei uma das fotos mais bonitas e simples da viagem. Em frente de onde estávamos havia uma espécie de garagem de gôndolas coloridas. A foto virará um quadro. Linda. O hotel em Veneza era sensacional. O melhor e mais clássico, porém simples e aconchegante atendimento de todos os hotéis de alto padrão que ficamos. E olha que já fiquei em vários desse naipe. A elegância do atendente no check in e sua postura eram impressionantes. Um verdadeiro lorde. A localização do hotel era privilegiadíssima. À porta gondoleiros esperando para passeios. À rua em frente nos levaria direta e rapidamente a Piazza principal de Veneza. A visão do nosso quarto era linda e nos dava a dimensão exata do que estaria por vir.
Check in e almoço resolvidos, seguimos a pé pela cidade. Lojas e canais misturam-se numa harmonia inusitada e muito interessante. Partimos para Rialto. Ponto turístico que, a pé, é possível fotografar de cima de uma pequena ponte em forma de arco um canal com uma visão linda. Ponto obrigatório para fotos.
Como não poderia deixar de ser, afinal estávamos como turista, resolvemos tirar fotos no Rialto. Não sei se é na ou no Rialto. Mas vá lá. Fernando e Juliana se posicionaram no parapeito da ponte. Ela de lado, sorriso largo, feliz e bonita. Ele encolhendo a barriga e… deixa pra lá. Preparei-me para produzir o meu melhor click. Lembrem-se, estávamos em Veneza. Rialto. O lugar dos clouses para a posteridade. Tudo pronto? Não. Claro que não. Um pequeno detalhe tirava a atenção do estagiário de Sebastião Salgado, eu, que não fotografaria enquanto outro entusiasmado e lerdo turista não saísse do lado do famoso casal Fraga. Nosso amigo que não aguentava mais segurar o fôlego para o clouse dá a ordem: “tira logo Alexandre”. “Esse cara não sai daí”, respondo. “Sai cavalo”, dispara Fernando. “O cavalo já tá saindo”, responde o turista brasileiro para nosso desconforto e saia justa. Por sorte o cara era do bem e completou. “Brasileiro é assim mesmo, mexe com todo mundo…”. Explodimos todos em gargalhadas…Inclusive o cavalo…..
Lembram-se das biqueres? Pois é. Estávamos loucos por um banheiro. Sentamo-nos em um bar em frente a um canal e tomamos duas. Fotos e fotos. Em direção ao nosso hotel e sua privilegiada localização, paramos na Praça San Marcos. Vários restaurantes em uma grande praça e, detalhe, a cada dez metros uma banda clássica a nos brindar com músicas italianas e outras lindas canções de vários lugares. Meninas, capuchinos. Nós, adivinhem…, biqueres. Comi um sanduwish maravilhoso de queijo com prociutto, claro. Momento ímpar. Imaginem em plena Piazza San Marcos em Veneza, tomando vinho e escutando música ao vivo. Lojas. Compramos uma mala cada casal. Não queríamos pagar cento e vinte euros novamente por excesso de bagagem como de Madri para Roma. Juliana e Solange viram um negócio que as endoidaram. Pensei ser uma bolsa Channel ou algo assim. Não. Não era. Eram escovas. Acreditem, escovas. Não perguntem por que uma escova seria tão reverenciada assim por elas. Mas foi. A ponto de noutro dia voltarmos à loja para comprar mais.
Hotel. Em frente combinamos um passeio de gôndolas que nos levaria ao restaurante Harrry´s um pouco mais tarde. Fernando e Juliana queriam comer um prato com atum já apreciado na outra vez que estiveram lá. Eita casal viajado. Um banho, uma ajeitada na peruca e gôndola. Confesso que não curti tanto, por medo. Não exatamente por mim, mas pela Solange que morre de medo de água. Pegamos um vento de proa que, percebi, deixou o gondoleiro um pouco preocupado, pois comentou com um colega qualquer coisa que pude entender mesmo em italiano. Quando o trem balançou tratei de procurar boias dentro do tal barco. Sem chance. Se aquilo vira, adeus. Mas podemos dizer que andei de gôndola em Veneza. Chic.
Chegamos ao restaurante. Pequeno e apertado. Mas confiante em nosso guia, entramos. Uma olhada no menu e, por certo, descobriríamos o tal prato. O esforço do Fernando, entretanto, foi em vão. Tiraram do cardápio o peixe. Sem problemas. Estávamos em Veneza, no Harry’s. Comemos bem e caro. Fumo. Ok. Tudo certo. Bora para hotel. Um Amarone no bar e fomos dormir.
Noutro dia à uma hora em ponto, e olha que os caras não atrasam de jeito nenhum, pegaríamos o transfer-lancha que nos levaria ao porto para um cruzeiro à Croácia e Monte Negro. O navio era um grande veleiro para duzentos e sessenta hóspedes e mais trezentos tripulantes. Chegamos com Don Ferdnando botando os bofes pra fora na primeira lixeira que achou. Tudo bem. Passou rápido. Check in ok. Cabine. Que cabine. Dupla. Dois banheiros. Algo que desconfiava ser maravilhoso, mas só comprovei nessa cabine. Dois banheiros. Parece besteira, mas não é. É a carta de alforria para o marido escravo das toneladas de shampoo, cremes, escovas, secador de cabelo, OBs, toucas plásticas, depiladores e todo arsenal para o martelinho de ouro a embelezar nossas top models.
Poderíamos usufruir cada qual do seu trono a qualquer momento e hora, sem problemas.
Era, também, sinal de que a viagem seria sensacional.
Tudo pronto, malas entregues, almoço. Susto. Um tremendo bandejão que nos deixou desacorçoados. Olhei para a Dior que também estava, digamos, apavorada com a coisa toda, respirei fundo e, coragem. Agora era encarar e paciência. Ah, esqueci. Dior é o apelido que minha irmã deu para o bico fino da minha digníssima esposa. Alcunha perfeita, né não? Imagina ela num bandejão? Pois é. Pensei que o cruzeiro tinha ido para o brejo.
Fernando tratou de discutir os roteiros dos passeios conosco rapidinho. O homem tem experiência e sabia que se demorássemos poderíamos ficar de fora dos melhores. Fechamos todos os possíveis e o que acreditamos serem os tops. As cidades eram Rojvini, Split e Dubròvinic na Croácia e Koto em Monte Negro, Taormina, na Sisília e Capri. A viagem terminaria na cidade história novamente, Roma.
Ao final da tarde o navio sairia de Veneza rumo à Croácia. Eu e Solange sentamo-nos no deck intermediário do navio onde acreditávamos seria a melhor vista. Bingo. Mais tarde Fernando e Juliana juntaram-se a nós para, conosco, vermos a saída.
O reboque afasta o navio devagar que, alguns minutos depois, desliza pelo mar como se estivesse flutuando sobre as águas. Ao fundo uma música linda, pensada para aquele momento. Emoção! Conquest of Paradise. Tradução livre: conquista do paraíso. Precisa dizer mais?
A sensação não é do barco que parti e sim da cidade que, vagarosamente, vai se afastando como quem vai embora e olhando para trás confessa, timidamente e sem querer, que demorará a voltar, nos deixando saudades. É como se naquele momento Veneza incorporasse a alma humana e como uma linda mulher flertasse conosco, mostrando sua silhueta majestosa através de sua roupa transpassada pelo sol a revelar seus desejos mais secretos e seu mais encantador poder de sedução. Não fosse estranho convidaria Veneza para namorar…
Brindamos a esse encanto com nó na garganta e por alguns eternos segundos ficamos calados. Talvez e intuitivamente para que não revelássemos a emoção pela voz embargada e olhos prestes a nos entregar a alma por meio de uma lágrima feliz por nunca termos visto algo tão lindo.
Anoiteceu e nos preparamos para o bandejão. Grata surpresa. À noite a história seria outra e fomos a um dos vários restaurantes do navio. Comida, atendimento e lugar ótimos. Mesa sofisticada e, claro, vinho bom. A coisa começou a ficar realmente boa.
Happy foi um dos garçons que nos atendeu e que já havia nos atendido no deck. Um filipino simpático e eficiente, ainda mais quando molhamos a mão dele com vinte euros de gorjeta, para começar. Imediatamente ele nos serviu água Pelegrino em retribuição e cortesia que durou a viagem inteira. As gorjetas, também.
A tribulação toda, com exceção do capitão e seu corpo de auxiliares, eram ou filipinos ou indonésios. Gente ótima, alegre, treinadas para nos encantar. Todos nos chamavam pelo nome e nos cumprimentavam, entusiasticamente, em todos os momentos que nos encontrávamos. Fernando inventou que se chamava Bond. James Bond. E aí virou Mr. Bond pra cá, Mr. Bond pra lá todos os dias. Juliana virou Juli, Juliana e Solange, Solanze… Eu fiquei Alex. Mais fácil para eles pronunciarem. Diversão garantida todos os dias.
Depois conhecemos o Ed, o One, o Boom, o Eduardo. Figurinhas carimbadas. O Ed revelou-se Eda. Fernando perguntou a ele: “Ed, are you gay?” No que ele, com a cara mais lavada e sem vergonha nenhuma do mundo respondeu: “Same times…” e deu uma risada reveladora, mordendo a ponta da unha do dedinho com a perna dobrada e mão no joelho. Dá pra imaginar, não? Gay mesmo.
Após o jantar fomos ao deck novamente que, todas as noites, tinha um casal cantando. Ele guitarrista de mão cheia e ela uma ótima cantora. Vinho, música, dança. Tudo de bom.
La manhana visitaríamos a primeira cidade. A coisa se dava da seguinte maneira: Aportávamos pela manhã na cidade e saímos ao entardecer. Tudo milimetricamente calculado. Horário inglês.
Chegamos à Croácia pela manhã bem cedo. Café da manhã e saída para o passeio às 08h15. Primeira cidade Rojiniv. Horrível. Literalmente. Novamente meu olhar encontrou o da Dior. Imagina a responsa. Fui eu quem inventou a história de viajar para a Croácia. Olhei para o Fernando que me disse, sem nada falar: “FUMO”.
Como uma luva Solange solta uma frase que resume a história toda após o passeio: “Não conheci a Croácia ainda”. E olha que só de ônibus andamos umas duas horas e meia.
De volta ao navio, nossa maior expectativa era a partida e a tal Conquest of Paradise. Dessa vez a mulher a mostrar os contornos era uma véia feia que nem se arreganhasse as pernas nos chamaria a atenção. Diferente da linda e charmosa Veneza. Partimos. Vinho.
Jantar, Cassino. Foram-se meus primeiros cem dólares para o beleléu. Fernando? Deixa pra lá. Se você tirar seis no dado ele tira sete.
Entre um número e outro e trinta e cinco fichas ganhas para cada apostada, uma taça de vinho. Já para as tantas, imagina no que deu. A coisa já tinha pegado antes, no passeio. Porque só de fogo pra aguentar aquilo. Amarramos nosso segundo porre.
Split era nosso alvo na manhã seguinte. Café, lounge às 08h15 e… Cadê o Fernando e a Juliana? Morreu. Ele.
Solange e eu fomos ao passeio sozinhos. Cada viagem, temos um dia cada um, eu e o Fernando, de pit stop. Ressaca mesmo. Naquele foi a vez dele. Eu já tinha dado um tempo em Roma. Um dia. Na verdade já cheguei ruim em Madri. Lembra-se da classe executiva, do cata caipira e do coco durinho? Pois é.
A princípio eu e Solange fomos meio contrariados. Na verdade quase não fomos. Eu estava com dores fortes nas costas e super cansado. Também estava desanimado e desconfiado dado ao passeio de Rojiniv. Ainda por cima sem o casal vinte…. hum…. Muito mau presságio.
Fomos. Ainda bem. A cidade é muito bonita. Como a maioria das cidades da região da Croácia e Monte Negro, Split tem uma muralha que a protegia em épocas de invasão. Dentro dela foi desenvolvida a cidade que depois se expandiu para além-muros. Um encanto. A arquitetura barroca com construções baixas de, no máximo, três andares. Cidade litorânea com uma baía linda à beira da calçada aonde começa a cidade. Não é um porto exatamente. Ou melhor, não parece com um porto. Parece que você encosta o navio como se estaciona um carro na calçada. Tudo simples e cheio de história. Rodamos a cidade toda dentro da muralha. Alguns restaurantes lindos ficam embaixo de apartamentos cujos moradores penduram roupas no varal. Só vendo para verificar que, ao contrário do que se possa imaginar, ao invés de parecer algo pobre e feio, é bonito e que dá um toque charmoso ao lugar. Reparei na limpeza da cidade e para minha surpresa descobri que a cidade é limpa duas vezes ao dia. Em seguida pegamos um ônibus e fomos para Gran …….. Linda cidade. Sem muralha, pois mais afastada do litoral e, portanto, não obviamente exposta a uma primeira investida de invasores. No caminho de volta o ápice do passeio. Paramos em uma espécie de taverna. À porta um casal com roupa típica aos seus costumes tocando e cantando suas tradicionais canções. Ao entrar nos deparamos com um ambiente aconchegante e acolhedor. Uma mesa comprida com taças de vinhos cheias, pão com prociutto e queijo à vontade para degustarmos, nos dava as boas vindas, abraçando-nos com os braços de sua cultura. Sensacional. Pisávamos na Croácia pela primeira vez.
No navio encontramos o senhor ressaca que, valente, nos acompanhou no jantar, junto com sua fiel escudeira, pau para qualquer obra.
Havíamos passado pela organizada e linda Madri. Pela louca cidade que inventou a história, Roma. Pela delicada região da Toscana, manjedoura das cidades terracotas e suas parreiras de uvas nobres a nos presentear com o néctar de Baco. Pela Veneza, cidade mulher, que ao partirmos nos seduziu com sua silhueta a nos encher os olhos de lágrimas felizes e que nos travou a garganta. Por Split que nos apresentou, pela primeira vez, a guerreira Croácia com suas muralhas heroicas e sua recente independência (2006).
Havíamos conhecido a todas aquelas cidades criadas pelos homens e sua inacreditável engenharia. Como explicar a construção de um Pantheon com dois mil e quarenta anos?
Agora chegara a vez de nos rendermos àquela que teria sido criada por Deus e sua indescritível paixão pela arte. Como explicar Dubròvinic?
Aquela cidade era o nosso próximo passeio no dia seguinte. Desta feita, Fernando estava zero bala.
Chegamos como nos outros dias, deslizando mansamente pelas águas calmas da baía de Dubròvinic. Impossível descrevê-la.
Seria preciso ter a pena sábia de Gonçalves Dias que, em Canção do Exílio, poderia tê-la cantado.
Ter o romantismo de Álvarez de Azevedo que o amor à mulher descreveu como ninguém, tendo morrido virgem. Ou a competência de Michelangelo que imaginou a Capela Sistina e a pintou para a sorte da humanidade.
Dubròvinic é uma conjunção de arte, mar, montanha, história. Começamos conhecendo uma pequena vinícola, artesanalmente comandada por um senhor calmo de olhar levemente pesaroso, com fala pausada e baixa, porém firme. Falava croata, com um erre fortemente pronunciado, enquanto nossa guia, num inglês arredondado e altamente inteligível, traduzia.
Contou-nos que em parceria com uma universidade da Califórnia descobriram que a uva Zinfadel, comum por lá, é derivada das uvas só existente na Croácia e cultivada por ele. Sua produção gira em torno de cem mil garrafas por ano e um dos seus vinhos brancos, experimentado por nós, ganhara alguns prêmios de qualidade importantes para a região. Compramos duas garrafas que tomamos no navio, obviamente. A recepção do bom homem e sua família foi educada e discreta como o povo croata me pareceu ser. Como não poderia deixar de ser serviram-nos pão, prociutto, queijo, azeitona e uma pequena salada de alface e tomate. Fui direto ao prociutto. Alface como em casa. Banheiro e tchau vinícola.
Ao chegarmos, propriamente dito, na cidade, despedimo-nos da guia e seguimos sozinhos. O tempo era curto e não queríamos perder tempo ouvindo detalhes de cada escultura, prédio e igreja. Nada que não possamos encontrar num click no Google. Demos uma pequena volta e paramos para almoçar. Excelente escolha. Um pequeno restaurante com cadeiras na calçada. Já que Boni e Ricardo Amaral, pobres, não foram à Croácia, nos viramos por conta própria. De entrada pedi ostra que as comi sozinho. Massa com frutos do mar, peixe, frango e vinho foram o suficiente para acalmar nossas já indiscretas barrigas. Estava ótimo.
Resolvemos subir a grande muralha que, como nas cidades anteriores, caracteriza a bela região. E aqui nossos olhos viram o improvável: a obra divina.
A cidade toda é linda, ainda que cercada por aquelas enormes muralhas. De cima tem-se a ampla visão de um lindo mar azul. Imenso. Na baía nosso navio fazia companhia a outro, maior e ambos pequenos do nosso ponto de vista ao alto. Era a cereja do bolo naquele quadro feito, não a óleo, mas a carbono, duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio que, com essas matérias-primas, só poderia ter sido pintado por Deus.
Subimos e andamos o que pudemos, já que o passeio requer preparo que, nós, atletas de levantamento de copos, não temos. Avistamos um bar a alguns metros abaixo de onde estávamos. À beira de um penhasco o bar super charmoso, convidava-nos a uma taça de vinho. Descemos e achamos a antessala do paraíso. Poucos minutos depois, à beira do mar, sobre o pequeno e extravagante penhasco, tomávamos nosso vinho contemplando a pintura à nossa frente. Mar calmo, cristalino de uma cor azul turquesa apaixonante. As águas calmas nos dava a sensação de que o mundo acabara de ser criado. De que o mundo era perfeito e estávamos no terceiro dia da criação divina, ainda sem homem e mulher. Só terra, mar e ar. Pensei em ficar para o dia em que Deus criou o homem e conhecer Adão e Eva. Quem sabe eu poderia soprar em seus ouvidos a merda que fariam e evitasse o rumo que as coisas tomaram. Mas o nosso barco sairia em algumas horas e, lembram-se, os caras não esperam não.
Deixamos a antessala e fomos descobrir o que ainda não havíamos visto. Com nossa estratégia ainda de pé, sentamo-nos em uma mesa de frente para a rua, pedimos vinho, capuchino e, claro, fomos ao banheiro.
A atendente era uma véia chata que nos atendeu mal. Sem problemas. Nosso objetivo era uma mijadinha, um vinhozinho e só. Xinguei um pouco a maldita e tudo bem. Ela não entenderia nada mesmo…
Saímos. Experimentei um sorvete com uma bola de pistache e outra de café. Ah, San Geminiano… Nunca mais… Bendita hora que tomei aquele sorvete. Qual outro poderei tomar igual sem voltar lá? Eita sorvetinho caro…
Barco again. Fernando tenta fazer SISPAG de dentro do navio, mas mesmo pagando cem dólares para usar o wi-fi não consegue. Tenta de vários lugares por umas duas horas e nada. Tá pensando que vida de presidente é fácil?
Tomamos um café da tarde com sanduba de mozzarella de búfala e tomate sem nada de sal e gosto e fomos para a cabine. Aquela dos dois banheiros, lembra? Pois bem… freedom…
Um breve descanso. Jantar. Vinho. Noutro dia conheceríamos a pequena e encantadora Koto, em Monte Negro. Café da manhã. Saímos.
Deixa-me explicar o que é Koto. Primeiro, é o quinto menor país do mundo. Com seiscentos e cinquenta mil habitantes. Maior apenas que Malta, Vaticano e outras duas cidades das quais não me lembro. Monte Negro é uma espécie de miniatura de Dubròvinic. Talvez seja essa a melhor definição. Acho mesmo que Deus quando estava criando Dubròvinic deve ter pensado num lugar de veraneio para Ele mesmo ir e criou Monte Negro. Como se precisasse. Ou durante a criação, ao pintar, em seu primeiro desenho de Dubròvinic, deixou cair uma gota de tinta mais abaixo da tela a óleo e formou-se aquele país. Como que por um acaso, daqueles que só acontece com gênios, deuses, ou pela própria mão do soberano num momento de descontração e prazer.
Subimos de ônibus por uma montanha cuja estreita estrada sinuosa dava-nos calafrios. A roda, por certo, estava no asfalto, mas parte da frente da carroceria saía morro à fora. Parece que o trem dobrava-se nas curvas. Alto, muito alto. Da janela víamos o abismo a querer nos sugar. Enquanto eu sacava las películas, Solange era só espanto. Chegava a estar gelada de pavor. Por várias vezes nosso ônibus precisou dar ré para que outros carros passassem. Imaginem dar ré numa curva estreita daquelas. Se fazendo manobras de frente já era algo impensável, de ré então…
Chegamos a um mirante altíssimo, com a visão privilegiadíssima da casa de veraneio do Senhor. Lá de cima era possível ver a baía de Koto. De um lado montanha, do outro, casas construídas ao pé de outra montanha. No meio, o mar formando a baía. Um cartão postal como poucos. Talvez aquilo tenha sido uma miragem a nos enganar. Talvez aquele lugar nem exista.
Retornamos ao ônibus e seguimos em frente. O guia nos levou ao alto de uma montanha. Um lugarejo. Entre poucas casas havia um restaurante típico. Lugar totalmente rústico, com mesas e cadeira de madeira rústica, couro de animais a decorá-las e vinho, prociutto, muito prociutto, queijo, pão e azeite. Delicioso. Comemos e bebemos. Nesse passeio nos aproximamos de um casal de brasileiros muito simpáticos que, conosco, se sentaram. Meia hora depois, momento de partir. Antes, porém, comprei um prociutto embalado a vácuo de quilo e meio, mais ou menos, por quarenta e quatro euros. Aqui coisa de oitocentos reais, provavelmente. O problema é que durante todo o resto da viagem preocupei-me em ser parado nos aeroportos e perder meu tesouro. Faltavam o aeroporto de Roma, Munique e alfândega de SP. Luta.
Saindo do rústico restaurante, numa mesa à minha frente alguns pratos com prociutto deixados pelos outros turistas que nos acompanhavam. Olhei para o prato. O prociutto, no mesmo instante, flertou comigo. Olhei para a Dior que, sem pronunciar uma única palavra, me disse: “você não vai fazer isso, vai?” Fiz.
Passei a mão em uma fatia e saí mastigando o defumado feliz da vida. E daí? Como disse o poeta: “Sou brasileiro de estatura mediana, gosto muito de fulana, mas cicrana é quem me quer…”. Bora saborear o trem. Só não levei uma taça de vinho porque não encontrei nenhuma pelo caminho. Se não…
Curvas e mais curvas, penhascos e mais penhascos depois, chegamos a Koto. Visitamos um museu de um tal Nicolau alguma coisa que foi oh cara do lugar durante muito tempo. Museu pobre, pequeno, mas interessante.
Rumo para a cidade. A miniatura de Dubròvinic se impôs gigante aos nossos olhos. Uma muralha enorme, alta, surgia à nossa frente. Entramos pelo portal e fomos conhecer e nos deliciar com o lugar. Desta feita uma cidade mais pobre, judiada pela guerra e com um comércio local incipiente. Nada disso, porém, tirou o brilho e o charme de uma atmosfera adorável, de um lugar lindo. Cogitamos em subir a muralha. Era muita coisa para nós, aqueles atletas que já comentei acima. Só que dessa vez estávamos um pouco piores. Andávamos há quinze dias. Cheguei a ter câimbras em uma noite que me fizeram gritar de dor quando estava dormindo. Acreditem. Acordei de tanta dor.
Escolhemos um restaurante para almoçar que nos pareceu simpático. Erramos. Eu errei. Fiquei com fome e, de certa forma, irritado. Mas fui vencido pelos meus pares que acharam bom. Fazer o quê? Recolhi-me à minha insignificância e calei-me. Ainda mais depois que encontramos o casal de brasileiros, Daniela e Fernando (xará do papito), que também achou o restaurante ótimo. Não falei mais nenhuma palavra sobre a espelunca. Ainda no restaurante, ao nosso lado, sentou-se um casal. Ele alto e claro. Ela baixinha e morena. Adivinhem? Um sérvio e uma brasileira. Descobrimos o casal porque ele, em português fluente, nos perguntou o quê achávamos da comida. Na média a nota, dado que havia três contra minha opinião, ficou em seis. Suficiente para o rapaz pedir sopa e não arriscar mais nada. Ele nos perguntou o que achamos de Monte Negro e nossa resposta foi, sinceramente, a melhor. Aquilo havia sido criado por Deus para que Ele passasse as férias. Daí que Solange pergunta ao sincero rapaz se ele havia conhecido o Brasil. Resposta afirmativa. Dior emenda, então, se ele gostara. “Não”! Respondeu o branquelo sem pestanejar. Mal criado, mas sincero.
Almoço terminado, partimos para as lojas e andamos.
Desde Roma Solange procurava por um relógio para o bezerro. Bruno. Desconfiada de que eu não acertaria o regalo, ao mesmo tempo pedia-me para escolher. Imagina errar o presente do riquinho… Nem pensar… Para o outro mauricinho, Frederico, eu já havia comprado a camisa do Cristiano Ronaldo. Esses bebezões dão um trabalho… Mas os amamos. Prego.
Prego é um termo italiano usado para tudo. Quer dizer pronto, de nada etc. É o ok dos italianos.
De repente surge uma loja só de relógios. Entro e em cinco segundos um Diesel piscou-me indiscretamente. “Solange, achei”. Disse à Dior. “Será?” Respondeu-me ela. “Claro, conheço o bezerro”. “Sei do que estou falando”. “Deixe-me ver a caixa.” Prego de novo. A cara do Bruno. Compramos. Não é que o arquiteto adorou? Ainda bem. Pois que eu não tinha plano “b” nenhum. Brincadeirinha, gordo…
Jantar no navio e dessa vez resolvi escolher um vinho espanhol. Crianza Ribeira del Duero. Apesar de 2010 estava ótimo. Durante a viagem, ainda no navio, pedimos outras vezes. Excelente custo/benefício.
Naquela noite fomos para o cassino novamente. Fernando perdeu quase todas as rodadas até os últimos três lances finais da roleta, pois no barco há hora de fechar o cassino. Insistente e frio, no último momento recuperou o investimento e saiu com duzentos e cinquenta dólares de lucro. Eu? Perdi novamente. Mas menos teimoso jogo pouco e não desafio tanto a sorte. Não ganho, mas também o prejuízo é uma garrafa de vinho mediana.
Naquela noite iniciávamos nossa longa viagem de navio para Messina, na Sicília. Para se ter uma ideia do percurso, estávamos em Veneza ao norte da Itália. Atravessamos do outro lado, mar Adriático, para a Croácia. Descemos por quatro cidades durante quatro dias e quatro noites. Nesse momento nos encontrávamos em frente, no primeiro quarto do mapa ao norte da Itália, portanto, ao contrário do salto da bota italiana completamente ao sul. Havíamos de descer tudo, pelo mar, e parar exatamente em frente ao salto, porém do outro lado onde fica Messina. Foram duas noites e dois dias de navio de Monte Negro até lá.
Aportávamos apenas em Messina, porém nosso destino seria a encantadora cidade de Taormina a quarenta minutos de ônibus. Juliana e Fernando falaram tanto daquela cidade que Juliana tomou cuidado em nos alertar que aumentávamos tanto nossas expectativas que seria possível nos decepcionarmos. Fernando falara de um restaurante que à beira de um penhasco, ao pé de um mar maravilhoso, avistaríamos o Etna. A cena seria cinematográfica. Imaginem almoçar em um restaurante, numa cidade da Sicília, com massa puramente italiana, em frente ao mar mediterrâneo, num restaurante em um penhasco, olhando para o Etna? Fazia todo sentido a preocupação da Juliana, afinal uma descrição desça… só se fosse verdade… E era!
Ao entrarmos em Taormina, imediatamente percebemos que o Fernando não exagerara. Não me lembro do momento que nasci, mas tenho a impressão de que ao entrar pelo arco principal da cidade, havia sido parido. Daquele ponto de vista, ao olhar suas ruas estreitas, em desníveis, com suas residências em prédios baixos de típica arquitetura italiana, me faria sentir como se eu tivesse saído de um mundo desconhecido, aquoso, com eco, preso, de cabeça pra baixo, amarrado a um cordão, chamado umbigo, para o mundo e abraçado a uma mãe eufórica e a um pai bobo a segurar seu rebento. Era, por fim, sair do Brasil e encontrar a Itália e ser abraçado por Taormina.
Andamos euforicamente pela cidade como a admirar um oásis. Tudo estava adequado à nossa expectativa criada pela descrição que outrora Fernando havia feito, entretanto buscávamos mais, pois que sabíamos que Taormina era capaz de nos responder com galhardia. Não nos decepcionamos. De fato estávamos diante de uma cidade rara, aconchegante, bonita e, sobretudo, sedutora. Tínhamos pouco tempo para explorar todo o potencial daquela ópera-prima. Havíamos de correr e achar o tal restaurante que nos apresentaria ao mediterrâneo e ao Etna de um único assalto. Como lembrar onde ficara? Não tínhamos o nome, endereço, nada. Os dois principais pontos de referência eram os nobres mediterrâneo e o Etna. Nobres, ambos, porém abraçam a cidade de qualquer parte que você a observe. Logo…
Fomos à luta. Sherlock Homes e seu caro Watson não descansariam até achar o tesouro. Uma simpática viela nos chamou a atenção por conta de uma passadeira vermelha em seu centro. Convidativo, não? Fui ver no que daria aquilo. Apenas uma loja e, ao final da viela, uma saída à esquerda para outra. Não era, definitivamente, o mapa da mina. Mais algumas tentativas e chegamos a uma rua como outra qualquer. Fernando parou, deu uma olhadela em volta, fez cara de lembrança e suspeitou ser o local. Olhei para ele e vi um mapa da mina com aquela cruz ao meio a indicar o tesouro. Precipitei-me a descer a rua como se pudesse reconhecer o lugar sem nunca tê-lo antes conhecido. Juliana tratou de me socorrer e veio atrás de mim. Parei em frente a um restaurante que desconfiei não poder ser o que procurávamos, tal era a feia fachada que ele me apresentava. Juliana, num pulo, tomou-me a frente, como a prever que a sorte nos sorriria, e abriu a porta. Um susto alegre anunciava o achado. Era lá. Conseguimos!
Acaso estivesse eu sozinho não entraria lá com a Dior nem a pau, Juvenal. Feio. Literalmente. A entrada, porém. Dois passos depois, à direita, mesas com toalhas xadrez por cima e branco por baixo. Ao fundo uma parede vazada a nos aguçar a curiosidade dava para o exterior do restaurante. Sentamo-nos à uma mesa justamente ao fundo. A visão era cinematográfica. Montanhas ao nível dos nossos olhos. O mediterrâneo embaixo, bem embaixo e do lado direito, o imponente Etna. Uma vista de cento e oitenta graus de nos tirar o fôlego. A comida? Tanto faz. Era como escolher qualquer andar para subir por já ter errado o prédio que havíamos entrado. Logo, com uma paisagem como aquela qualquer comida haveria de ser benvinda. Os protagonistas não permitiriam coadjuvantes. Ainda assim eles se impuseram e os saboreamos rapidamente. Rapidamente mesmo porque tínhamos quarenta minutos para o rango. Eu e Fernando. As damas ainda sairiam antes. Valentino as seduzira quando demos bobeira. Bolsas lindas e elegantes as obrigaram a sacar as targetas e a se regalarem.
Fernando e eu ainda tivemos tempo de terminar nossa bebida preferida contemplando o mais bonito cartão postal da linda cidade. Mais uma vez o casal vinte teria razão. Não poderíamos ir à Itália sem conhecer aquela bonequinha: Taormina.
Encontramo-nos na loja e em poucos minutos, numa correria desenfreada, fomos alcançar o grupo que nos levaria de volta ao navio. Partiríamos para Capri naquele final de tarde.
Antes, entretanto, não poderíamos deixar nossa estratégia que nos acompanhara por toda a viagem. Banheiro e biqueri. Tudo rápido. Muito rápido.
Ao chegarmos ao veleiro gigante fomos informados de que à noite serviriam um churrasco de lagostas nos três decks de popa. Preparados para o frio, seguimos em frente. Nossa mesa ficara no último deck acima. Visão privilegiadíssima para qualquer coisa. Era sabido que avistaríamos um vulcão. Stromboli ou Estrômboli. Pesquisei depois para saber que poderia escrever de ambas as formas. Pensei com meus botões: qual o quê. Era noite e veríamos tão longe quanto um dedo em frente ao nariz. Trouxeram-nos cobertores e nos aquecemos junto a três garrafas de Barolo colocadas, provocativamente, ao lado da nossa mesa.
Happy tratou de vir correndo para saber se estávamos bem. Embora não nos atenderia nessa noite. Atento, cuidara para certificar-se que de longe, como um anjo da guarda, haveria de nos cuidar. Por óbvio que tal carinho lhe renderia alguns euros a mais. Nova, outro garçom atencioso e dedicado, já havia nos atendido no restaurante francês e nos atenderia no deck também. Jantar mais requintado era com Nova. Um lorde com um inglês suave e bem falado, que disfarçava bem o sotaque filipino. Serviu-nos lagosta e carré de cordeiro. Estranha e gostosa mistura de gêneros que, no Brasil, não é comum. Se é que possível. Abrimos o Barolo e brindamos. Desci para ver o que mais aquela interessante noite nos reservara em comes e bebes. Para minha surpresa encontrei, não só as lagostas e carrés, como também paellas e um leitão assado e inteiro. Além dos doces de sobremesas à vontade. Peguei um prato e coloquei mais carrés e lagostas para compartilhar com minha turma. Para os demais, certamente, passei por mal educado. O prato ficou alto.
Ao longe uma silhueta enorme a marcar os contornos de uma montanha achatada a nos anunciar o Stromboli. Como? Pensei. Era noite, em meio ao mar escuro. Nublado. Mas a silhueta impunha-se. O veleiro diminuiu a velocidade e como quem deseja entrar no quarto do filho, sorrateira e silenciosamente, para vê-lo dormir, chega pertinho do vulcão e para. A montanha com cratera no topo se impõe à nossa frente. Manchas delimitavam um caminho escuro e percorrido por lavas morro abaixo a demonstrar a fúria do monstrengo. Ficamos pasmos. Nunca pensei que veria um vulcão cara a cara como a desafia-lo a provar que, de fato, de seu interior poderia cuspir o maravilhoso espetáculo de magma a explodir no céu.
Cuidadoso, nosso pai veleiro que espreitava o filho a dormir, não pode evitar que o mesmo acordasse e nos desse boas-vindas, ejaculando fogo e rugindo alto num show indescritível e belo. Parecia bravo. Torcíamos para que estivesse.
A euforia toma conta de todos. Gritos, gestos, flashes, espanto! Como pode acontecer isso? Como isso tudo se formou e se processa dessa forma? Por quê? Para quê? Acidente? Física apenas? Deus?
Embasbacados, seguimos em frente como se aquele momento fosse um divisor de águas em nossas vidas. Acostumamo-nos a contemplar grandes feitos do homem que estão pertos e convivem conosco diariamente. O prédio mais alto do mundo, o Corcovado, um foguete, uma Ferrari. Feito por Deus é mais difícil ou incomum, nos parece. Será esse nosso espanto? Ou será que esse espetáculo, chamado natureza, é um feedback de Deus nos fazendo refletir sobre o quê deixamos para trás? Ou será sobre o quê já esquecemos e nos avisar, então, que devemos melhorar nossa sensibilidade? Talvez não tenha nada a ver com essa visão romântica de vida que, ingenuamente, possamos querer acreditar, mas sim e apenas, a natureza que, bravamente, nos enfrenta a nos lembrar de que, apesar de nós e para nós, ela continua sua luta e persiste. Lição dos céus, não é não?
Já estávamos realmente cansados. A viagem toda foi fascinante. Linda e agradabilíssima. O aconchego do lar na parede da memória, porém, iluminava o caminho da volta e nos apertava do calcanhar ao coração. Manhã seguinte seria nosso último dia na fabulosa terra que inventara a história. Itália. O destino, Capri.
Capri haveria de ser a cereja do bolo. O toque final. A pá de cal que sedimentaria o the end feliz de um giro rápido pelo hall do céu. Após um sono rápido e profundo despertei procurando o sol. Capri é Capri e sempre a imaginei como um satélite natural da estrela ardente e brilhante que nos traz vida todos os dias. Não haveria de nos decepcionar naquele domingo, já, às vésperas de nossa volta para casa. Decepcionou um pouco. A tal expectativa sempre a nos lembrar de que ela nos baliza a felicidade.
Dia nublado. Uma lancha grande nos esperava, e a mais trinta pessoas, para nos levar à gruta azul. A guia, observou Fernando, deveria se chamar mentira. Tinha as pernas curtinhas, coitada. Parecia um anão de jardim. Um toco de amarrar jegue. Com um vento forte e meio frio, partimos com a mentira nos informando sobre a ilha. A nos aquecer, distraindo-nos, a paisagem pouco distante e bela do Vesúvio.
A ilha tem um paredão enorme e alto de 589 metros chamado Monte Solaro. Pequeníssima tem 10,5 km e fica no golfo de Nápoles no mar Tirreno, o mesmo do Stromboli que havia nos maravilhado noite anterior.
O tal Monte Solaro tem, em sua extensão, algumas fendas pequenas e uma, em especial, que guarda uma surpresa: a gruta azul. Uma espécie de caverna com uma entrada pequena e águas azuis claras e leitosas. Um quadro.
Ao chegarmos de lancha, vários barquinhos de, no máximo quatro lugares, estavam prontos a transportar os turistas, gruta adentro, e a nos presentear inserindo-nos na encantadora paisagem. Era o fotoshop feito pela natureza. Desembarcamos da lancha diretamente para os barquinhos a remo e conduzidos por nativos com um dialeto absurdamente esquisito a nos confundir e a não nos permitir entender nada.
Uma volta rápida no interior da gruta exótica de águas lindas e voltamos à lancha. Em direção à ilha, propriamente dita, mentira, e suas perninhas, continuava a nos falar sobre a região. Pouco compreensível com aquele sotaque italiano e vento soprando nos ouvidos.
Desembarcamos e nice to meet you, Capri. Uma parada em um restaurante para degustar vinho da região e largamos o grupo para trás, em seguida. Várias lojas e Fernando e Juliana apaixonam-se por uma espécie de bandeja de barro pintada a mão, linda. Seria lembrança certa a decorar a mansão dos Fraga. Compraram. De um mirante tiramos lindas fotos com nosso barco, mais uma vez, intrometendo-se na paisagem e dando um toque sofisticado ao lugar que não faria questão e nem precisava de nenhum detalhe a mais para ser imperativo e belo. Pena que, preguiçoso, o sol resolve nos pregar uma peça e, como que por pirraça, nos deixar a ver, literalmente, navios.
Um táxi e cinco minutos depois estávamos no centro de Capri. Fernando mira uma loja de Panamás legítimos e entra. Escolhe um lindo e dispara: “Alexandre, compra um procê”. Até então eu estava usando um chapéu feito de papel, embora não parecia, mas que entortava todo e que o Fernando prometera jogar fora a qualquer hora. Respondi que apesar de lindo eu não investiria uma grana preta em um chapéu. Resumo, ganhei o Panamá de presente. Agradeci o regalo e fiquei super feliz pelo chapéu e o carinho do amigo.
Sentamo-nos, eu e Fernando, em um restaurante com cadeiras na parte externa do restaurante, enquanto Solange e Juliana foram às compras. Pedimos vinho, água, bruschetta e sandubas para matar a fome e ver o tempo passar sem preocupação. Mais uma vez o tempo não estava em nossa companhia e tínhamos que ser rápidos. Soubemos, porém, aproveitar aquele instante pleno e privilegiado a nos lembrar do quanto somos afortunados. O mundo e seus lugares vários e diferentes é realmente belo. Pena o homem não se lembrar disso e maltratá-lo tanto, destruindo-o em guerras, ódio e disputas equivocadas e hediondas.
Para nosso hotel flutuante voltamos. Seria o último dia na terra que inventara a história. Passaríamos em Roma, manhã seguinte é verdade, mas só para pegar o voo para nossa escala em Munique e voltarmos ao Brasil.
Essa noite Fernando barbarizou. Jantou, bebeu, jogou e cantou, arrancando aplausos da plateia. Alguns velhinhos perguntaram: “are you single?” Para orgulho do nosso Sinatra.
Fim de navio com a chegada a Roma. Check out ok, pegamos um táxi para o aeroporto de Roma antes da hora da chegada do nosso transfer, pois não queríamos perder tempo. Nosso voo, porém, era três da tarde para Munique e eram, apenas, dez da manhã. Pensamos em adiantar o voo e aproveitar para conhecer a cidade Alemã. Oitocentos euros seria a pequena bagatela para tal mister. Prego! Decidimos ficar aonde estávamos e aguardar nossa hora.
O celular do Fernando havia quebrado e ele decidiu comprar outro ali mesmo. Compra feita olhamos em volta e encontramos o que procurávamos. Vinho e bruschettas.
Chegamos a Munique às cinco da tarde e nosso voo para o Brasil sairia às dez da noite. Malas guardadas num guarda-malas, nosso guia mestre que faz inveja ao playboy mais viajado do Brasil, Jorge Guinle, tratou de nos levar conhecer a cervejaria mais antiga do mundo: Hofbrãuhaus de 1.589. Imagina só, ela foi inaugurada apenas oitenta e nove anos após a descoberta do Brasil. Ainda trocávamos pentes e espelhos com os portugueses quando ela começou a produzir cerveja. É mole? Por curiosidade fui pesquisar quando surgiu a cerveja no Brasil e para minha surpresa foi em 1.640, quando Maurício de Nassau chegou ao Recife trazendo, sábios, artistas, cientistas etc. Ou seja, cento e quarenta anos após a descoberta e cinquenta e um anos depois do início daquela cervejaria em Munique. Somos ou não somos retardados? Um dos motivos da demora, dos portugueses, em trazer ou fabricar a cerveja na bendita e recém-descoberta colônia, era o receio dos lusitanos em perder vendas de vinhos no mundo, cujo monopólio era à toda prova. Os vinhos chegaram apenas em 1.830, porém. Vá entender. E saber que expulsamos os holandeses daqui por esse mesmo tal Maurício de Nassau. Vai ser burro lá em Portugal, ora, pois. Brasil, sil, sil….
Uma pausa para falar um pouco de Munique antes da loira. Só indo lá para entender o que é civilização. Cidade limpíssima, organizada, absurdamente bonita e segura. A frota de táxi é da marca Mercedes. Todos, de todos os tipos. O motorista educado e simpático fala inglês fluente e ao fundo, a rádio toca música clássica. É possível?
Pedimos ao taxista para nos levar a cervejaria e retornar em duas horas para nos levar de volta ao aeroporto a tempo de pegarmos nosso voo. Sem problemas. Passou-nos o número de seu celular e anotou o nosso, apenas por precaução, porque certo como dois e dois são quatro, ele estaria no local e hora combinados para nos apanhar.
Deixou-nos em frente a imponente cervejaria. Um edifício enorme de típica arquitetura alemã e novo, apesar de antigo. Entramos. Salão enorme com mesas e cadeiras de vários tamanhos espalhadas por todo o lugar. Sentamo-nos. Ao lado uma banda, vestida a caráter, tocava músicas alemãs, dava o clima. Um rapaz com um cesto nas mãos vendia Brezel, um pão em forma de um nó, salgado. Um snack grande. Compramos. Gostoso. Pedimos duas canecas com um litro de cerveja cada. As meninas uma tulipa. Salsichão branco com mostarda escura e Schintzel, que a Solange insiste em chamar de bifinho a milanesa, para desespero do Fernando. A salsicha vem dentro de uma cumbuca de louça mergulhada em um caldo ralo que, sem hesitar, pedi duas porções e repeti pedindo mais uma. Nunca me dei bem com cervejas e um copo da loira me cria mais problemas estomacais do que duas garrafas de vinho. Olhei o canecão. O estômago me respondeu: vai dar merda. Encarei e bebi. O que aconteceu? Nada. Fernando, não contente, pede mais uma caneca de um litro que dividimos. Sabe que aconteceu? Nada again. Nem mijaneira deu. Uma delícia. Tudo.
Ao nosso lado, um grupo de garotos bebia os canecões de cerveja e brincavam com uma pilha de aparadores de copos de papelão. As nossas conhecidas bolachas, comuns em bares e restaurantes. A brincadeira era colocar dez ou quinze dessas bolachas empilhadas, com metade da última apoiada na mesa e metade fora. Com a mão abaixo da pilha de bolachas, batia-se, levantando-as e fazendo-as girar no alto e tentando pegá-las, todas, de uma única vez.
Fernando bate no peito e chama o jogo pra ele. Tenta. Esparrama tudo, para risos da molecada. Encorajo-me e peço para tentar. Ferro. Risos again.
Alguns minutos depois e, do nada, um rapaz, do grupo, me desafia novamente. Tento e… prego. Acertei em cheio. Peguei todas. Sensacional. O garoto me cumprimentou eufórico. Valeu!
Nosso Guinle se lembrou de uma loja que vende especiarias e pratos alemães que, ele sabia, me deixaria louco. Saímos a procura da tal loja. Antes, porém, paramos na lojinha da cervejaria para comprar uma lembrança. Achei um avental de couro rústico com o nome e ano de inauguração da casa. Lindo. Ficou caro. Oitenta euros o avental e cem dólares que perdi ao tirar do bolso na hora de pagar o pedaço de boi que penduraria no pescoço para cozinhar. Sem problemas.
Descoberta a loja e a poucos passos de onde estávamos partimos. O lugar aonde fica a cervejaria, numa confluência de ruas a parecer uma pequena vila, é maravilhosa. Mesas de restaurantes na rua de paralelepípedos, sem calçadas, misturando-se a bela arquitetura da cidade e a nativos e turistas, davam uma atmosfera deliciosa e bonita. A cidade, de fato, é linda, diga-se de passagem. Toda ela. Ao dobrarmos uma esquina encontramos a Alois Dallmayr Koenigl Bayer Hoflieferant. Fechada. Já passara das sete da noite e apesar do sol, ainda se despedindo, a sofisticada loja fechara. Uma pena, realmente. Valeu o esforço do Jorginho. Nosso Guinle. Lembra?
Hora marcada e nosso chofer em sua poderosa Mercedes nos encontra em lugar e hora marcados. Impressionante. A volta nos permitiu continuar apreciando a cidade. Adorável. De repente o motorista nos diz estarmos em uma autoestrada – Autoban – sem limite de velocidade. Para desespero de nossas companheiras, eu e Fernando entusiasmamos o taxista a colocar, pelo menos, duzentos por hora. Em segundos, na reta, a Mercedes, bateu a meta. Fiquei com inveja. Meta é meta e missão dada é missão cumprida.
O aeroporto de Munique é belíssimo e contemporâneo. Absolutamente sofisticado. O único senão são as lojas que fecham às oito da noite em ponto. Nada a fazer, restou-nos esperar a hora da partida.
Esse momento é meio esquizofrênico. Queremos partir, queremos ficar. O cansaço, a saudade de casa e a responsabilidade nos exigiam o retorno.
Lufthansa e adeus Europa.
Ótima viagem. Excelente companhia. E o roteiro? Prego!
Alexandre Câmara
Maio de 2014