Crônica

Anastássios Hristos Kambourakis

“Lelê: você está vendo tudo isso? Olhe até onde sua visão não puder mais enxergar: tá  vendo aquela montanha? aquela cerca lá no final, perto da linha do horizonte? Tudo isso pertence aos meus filhos. Portanto, pertence a você também!”

Essas palavras foram, para mim, a mais perfeita maneira de dizer “eu te amo” que já ouvi em minha vida e dirigidas a mim.

Manhã linda de sol, num sábado de verão, estávamos em Amparo.

Com frequência, aos sábados, eu e Anastássios, partíamos em direção ao sítio de sua família. Éramos eu e ele apenas e, sinceramente, não precisava de mais nada nem ninguém. Íamos contando causos como dois velhos amigos. O detalhe é que Anastássios tinha uns vinte anos a mais que eu. 

Contava com catorze anos quando o conheci. Eu era boy interno e ele gerente do departamento de eletrônica de uma multinacional. Ele já era amigo de meu querido pai que era par dele – como gerente de suprimentos – na mesma empresa. Uma vaga aberta no departamento daquele gerente coincidiria com uma promoção pra mim. Fui lá falar com o Tassos: assim eu o chamava. Ele, um grego sábio – uma das poucas pessoas muito, mas muito inteligentes que conheci em toda minha vida – me fez um desafio: “se você ler o que eu escrevi aqui, considerarei você para a vaga.” Bingo: li tudo sem errar. Sua letra era um garrancho só e misturava algumas letras em Grego. Foi uma festa. Naquele dia intui, mesmo ainda jovem, que ali eu encontraria um tesouro: amizade e conhecimento. Nossas almas se encontraram e logo lá estava eu, promovido, como assistente do Tassos. O adotei como pai e, tive o privilégio de ter, em minha fase adolescente, dois pais maravilhosos: o biológico e o escolhido/adotado por mim. A recíproca foi um presente: Tassos me adotou como seu filho. 

Não tardou e, num sábado, depois de uma manhã de trabalho ele me chamou para almoçar na casa dele; queria me apresentar sua esposa e filha. Pois bem, aqui eu poderia iniciar um livro à parte: Ivete – a esposa – lembra daquelas poucas pessoas muito, muito inteligentes que mencionei há pouco? Pois é, aqui está mais uma. Mulher gigante, como ser humano, mãe, professora universitária, amiga; acolheu-me maternalmente. Eu? Tirei a sorte grande: Tassos e Ivete se tornaram meus pais adotivos. Dessa minha mãe, falarei em outro momento, pois: é muita estória boa e de amor que não caberá aqui. Imaginem só, vivenciei mais três nascimentos nessa família. É ou não muita estória?

Anastássios também era professor universitário. Ministrava aulas de matemática. Quase todas as sextas-feiras ele, ao final das aulas, saia com dois ou três outros professores para comer pizza. Lá estava eu a tira-colo. Antes, porém, assistia suas aulas com admiração. Ele era muito engraçado e querido. Certa feita, parou a aula, aproximou-se de um aluno e disse: “par ou ímpar?” Ao ganhar o jogo pediu para o aluno mudar de lugar porque ele estava atrapalhando a aula conversando muito. O aluno, encabulado, consentiu sem discutir, afinal quer maneira mais  genial de receber uma reprimenda?

Tassos tinha uma régua T de cálculo. Era uma régua grande e tinha um estojo vinho, lindo. Eu fiquei louco pela régua e pedi a ele de presente. Ele não teve dúvidas e me disse: “se você aprender a usá-la lendo o manual – eu tiro suas dúvidas – a régua é sua.” Topei na hora; o manual, entretanto, além de enorme, era em inglês. Entendi o recado: ele sempre me desafiava para que eu aprendesse algo. Pois é, aquela minha intuição, de que eu aprenderia muito com ele, foi certeira.

Foram tantas os nossos encontros; conversas; viagens ao sítio… 

Tantos foram os momentos de alegria, descontração, humor. Sim, ele era muito bem-humorado. Nunca o vi bravo. Não o vi discutir com ninguém. Sempre tinha uma piada inteligente frente a qualquer situação. Tinha uma lógica lúdica e acessível à compreensão. Ele parecia ter a missão de ensinar a qualquer hora, pois aproveitava cada minuto para esse mister. Passei grande parte da minha adolescência ao seu lado. Estava sempre com ele. Queria protegê-lo, cuidar dele, sei lá…

Uma vez estávamos na sala dele, na empresa, e um rapaz entrou para pegar um livro técnico que estava no arquivo. Anastássios, distraído, arrotou. Ele era um gerente importante e jamais poderia ter arrotado em público. O rapaz se virou imediatamente ao escutar aquele som, humano mas inapropriado, e atônito nos olhou. Não tive dúvidas, disparei: desculpa, acabei de tomar uma Coca-Cola. Tasso me olhou com gratidão e aliviado. Conhecíamo-nos pelo olhar. Nossa cumplicidade era à toda prova.

Dessa e de tantas outras estórias rimos muito. Éramos dois grandes amigos de almas adolescentes. 

Há algum tempo atrás ele nos deixou. Junto com a saudade me deixou um grande valor: a amizade fraterna e incondicional.

Não fosse injusto com meus queridos e poucos amigos, diria: não se faz mais amigos como antigamente…

Alexandre

27/05/2020

Um humanista um pouco bravo.

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