Filho do Bigode
O Lourdes, em Belo Horizonte, pelo meio dos anos oitenta, era um bairro essencialmente residencial. Ainda existiam ali, antes das grandes construtoras entrarem e verticalizarem tudo, muitos casarões antigos, que abrigavam famílias que se conheciam pelo nome, nas suas ruas sombreadas por árvores frondosas, onde se viam rodas de idosos sentados nas calçadas a ler o jornal, ou disputando jogos de dama, meninos descendo as ladeiras em seus carrinhos de rolimã, senhoras com meninos de colo fofocando na rua, o que transformava o bairro, quase na virada do século vinte, meio que em uma cidade do interior, encravada dentro de uma capital. Esse era o clima!
E lá vivia o Bigode, figura conhecida e muito querida na área, morador de um sobrado espaçoso, já meio carcomido e desgastado pelo tempo. Nos fundos, em uma entrada pela lateral do tal sobrado, ficava a sua quitanda, a qual nomeara Bitaca, famosa pelo crédito que dava aos clientes assíduos das hortaliças, legumes e outras necessidades básicas diárias que comercializava.
Mas ocorre, que caía a noite, ali na região da Avenida Olegário Maciel e nas ruas em volta, em especial nas ladeiras da rua Bernardo Guimarães, e a coisa mudava. Lá, logo lá, era o “ponto” de permanência da turma da noite de BH, à procura de sua clientela.
Todos os dias, dezenas e mais dezenas de prostitutas e profissionais do sexo, em todas as variações, faziam ali a sua ronda noturna, abordando os carrões dos clientes abastados, que iam procurar seus serviços e sua companhia.
E prá falar a verdade, a convivência entre o pessoal da noite e os moradores da área, na imensa maioria do tempo, era tranquila.
Havia um implícito código moral que regia a coisa, parece, onde tacitamente uma turma não amolava a outra, por assim dizer, cada um levando sua vida em paz, sem incomodar o próximo. E assim foi, pelo menos durante muito tempo.
Até que um dia, já entrado na madrugada, o filho do Bigode começa a escutar, da janela do seu quarto, virado pra rua, vozes alteradas defronte à casa. Abre assustado a janela, com a escuridão a lhe confundir, mas divisa nitidamente o imenso bigodão do seu pai a discutir, agitado, próximo das vias de fato, com dois rapazes altos, desconhecidos, em pé, na calçada da casa.
Não titubeou. Foi só o tempo de se calçar e descer as escadas, pra chegar a tempo de encontrar a própria mãe encolhida num canto, apavorada com a situação, e o pai quase berrando pra dupla:
– Aqui não, na porta da minha casa não é lugar pra isso. Eu chegando em casa com minha esposa e encontro uma cena dessas? Quer fazer sexo, vai pro motel, ou pra puta que o pariu, mas em pé, no meu jardim, eu não admito.
E o rapazinho, atrevido e esganiçado, talvez animado porque eram dois, colocando o dedo no nariz do velho, só afirmava:
– Faço aqui, faço no seu jardim, e, se eu quiser, entro e faço na sua casa, ô bigode filho da puta!
Fato é que, justo nessa hora, nesse exato momento, parece que combinado, chega o Zé, outro filho do Bigode, vindo de alguma gandaia qualquer.
E aqui cabe um parêntese: Zé era um cara “ruim” de briga, como ele mesmo se definia. Porque pra ele, na briga, não podia ser bom, tinha de ser “ruim” e bater primeiro pra conversar depois. Quem bate primeiro tem 90% de chance de ficar em pé por último, sentenciava.
E, com o Zé na área, nem ele nem o irmão conversaram. Ruins de briga, foi porrada pra todo lado, até o fim da contenda.
Mas aí é que vinha o problema. Tinham criado um dilema que poderia, muito provavelmente, inviabilizar a sua permanência naquele bairro, depois de tantos anos. Como conviver, dali pra frente, todas as noites, com o perigo da retaliação, furtiva, talvez covarde, que, tinham a certeza, certamente viria?
Nunca veio!
E com o passar do tempo acabaram por entender que o tal código moral funcionou. O tribunal da rua e da noite sentenciou, por decerto, que não eram eles os errados na briga. Errado era quem abusou do direito de fazer “ponto”, pra querer realizar a “prestação dos serviços” logo no jardim da casa do Bigode, figura estimada e tradicional do bairro.
Em muitas noites, às vezes os irmãos tinham quase a certeza de que escutavam, quando, na madrugada, passavam à pé por aquelas ladeiras, voltando pra casa:
– Não mexe não que é filho do Bigode!