Crônica

Preciso ver, mas não estudei engenharia. Que pena!

Estou com degeneração macular e com o tempo terei séria limitação para enxergar. Em outras palavras: ficarei cego!

A aleatoriedade da vida preferiu me brindar com a cegueira ao invés de me premiar com a mega sena acumulada. É a vida!

Inteligentes buscamos compensações em tudo para aliviar a crueza da vida. Inventamos Deus e o Diabo, literalmente, para sublimar nossa existência; como diria Daniel Goleman em Mentiras perfeitas, Verdades simples. Abro parênteses porque calhou-me agora se devo escrever Diabo com maiúscula ou não, já que escrevo Deus assim. Como são entidades importantes e não faria sentido acreditar num sem acreditar no outro, entendo que devo prestigiar o sete peles também e escrever em maiúscula.

Pois bem, eu dizia que inventamos Deus e o Diabo para encarar as mazelas de nossas existência. Eu não a estudei, mas lanço mão de uma artimanha para suportar a ideia de que ficarei cego: o conceito de engenharia reversa. Explico: na engenharia reversa pegamos uma máquina e a desmontamos estudando-a como foi feita e, buscando melhorias e inovação, construímos uma máquina melhor do que a primeira e assim a humanidade avança se reinventando. Empresto esse conceito na ânsia de me desconstruir e, literalmente, descobrir outras maneiras de ver a vida e continuar a vivê-la reinventando-me. Pensei, pois, em começar de forma a não lamentar as coisas que não poderei mais ver e rever o que, nesses meus cinquenta e oito anos de vida, já vi. 

Ok, posso estar forçando a barra é verdade. Mas não deixa de ser uma ideia; vá lá…

Goleman me deu uma força nessa estória, confesso!

Uma das ideias, para praticar, meio estapafúrdia em si, é fazer o caminho reverso, vendo de trás pra frente. A diferença é que nada precisará ser desconstruído e remontado, até onde minha máquina da memória permitir. O desafio de ver o já visto, se seletivo, é prazeroso, acalenta o coração  e faz lembrar-me das mais variadas emoções que minha visão já pôde me proporcionar. Senão vejamos:

A primeira, e talvez uma das mais importantes de que me lembro, foi o nascimento de minha filha. Chorei do inicio ao fim e mais um pouco. Não me deixaram ver ao do  meu filho que, certamente, me deixaria igualmente perplexo e feliz (não ver é foda mesmo). Outra visão emocionante e surreal, ainda falando da minha filha, foi vê-la vestida de noiva. Ah… que visão extraordinária, linda. Tantas outras visões dos meus filhos  me vieram à mente… 

Vi a felicidade estampada no rosto do meu filho quando lhe dei de Natal um Playstation, dizendo ser um quebra-cabeça de três mil peças; ao abrir, e se surpreender com o presente desejado, enlouqueceu. Foi um momento mágico para ele e, também, para mim.

Lembro-me de ter me visto, com mais ou menos doze anos, o quanto eu já tinha crescido, pois já conseguia me enxergar no espelho sem ficar nas pontas dos pés, como fazia sempre, no banheiro da casa onde nasci.  

Pude viajar para muitos lugares no Brasil e no mundo e ver tanta coisa interessante: vi, do alto de um balão, a Capadócia, suas ruínas e arquitetura maravilhosas; vi os vulcões Etna, Vesúvio e o Stromboli, esse último em erupção. Vi o Coliseu, o Vaticano e a Capela Sistina. Vi a Catedral Notre Dame em Paris e a Sagrada Família em Barcelona. Uma tourada em Madri que me deixou perplexo, vi. Também vi as praias e as muralhas da Croácia e de Monte Negro. O sol se pondo em Praga deixando sua arquitetura medieval dourada como numa pintura de Michelângelo; assim como vi sua enigmática Monalisa. Louvre e seus acervos; a Torre Eiffel e tantas outras maravilhas de Paris. Vi Lisboa e seus encantos e me apaixonei à primeira vista; outras cidades maravilhosas e algumas vinícolas desse maravilhoso país chamado Portugal, vi. Vi Budapeste e Viena. Vi a Berlim e sua maravilhosa estação de trem; seu muro derrubado e sua história resiliente. Vi a Broadway e alguns de seu espetáculos. Assim como vi as torres gêmeas que não mais existem. Também vi a torre nova que ficou em seus lugares. Vi um show de jazz em Chicago, seus canais e o Sears Towers. Vi a Disney a beleza de Key West com o museu de Remingway – do fabuloso “O velho e o mar” que pude ler. Vi os fascinantes canais de Amsterdã e suas moradias flutuantes.  Vi o Chile e sua linda  Santiago cercada pela sua majestosa cordilheira, além de Vinha del Mar e algumas vinícolas. Vi o Uruguai e suas praias.Também pude ver nossas Cataratas do Iguaçu; nosso Pantanal e seus mais variados habitantes selvagens. Via a exuberante Bonito, suas cavernas e as nascentes de grandes rios. Vi a maioria das praia do nosso maravilhoso Nordeste e a praia de rio de nossa Manaus. Vi a cultura paraense. São Luiz do Maranhão e suas peculiaridades, também a vi. Parati meu destino predileto, a vi tantas  vezes. Vi Ouro Preto e Tiradentes; a acolhedora Belo Horizonte. Vi o Rio de Janeiro e o Cristo; o bondinho, assim como o bonde da Lapa, lá de cima, também os vi. Vi tantos lugares que seria quase impossível declinar todos. Tantas cidades aqui e no mundo. Suas respectivas idiossincrasias e cultura. Suas gentes…

Vi auroras e pores de sol uns mais lindos e inspiradores do que os outros. Vi a lua cheia e romântica se intrometer entre a nossa linda Terra azul e a nossa maior estrela – o sol – o eclipsando.

Enfim, vi muita coisa e muito mais teria pra ver. Certo é que não mais poderei fazê-lo. 

Usarei, então, a engenharia reversa como minha metonímia preferida aliada à minha memória e aos outros sentidos.

Desconfio, porém, ter mais um probleminha pela frente: não estudei engenharia. Que pena!

Alexandre

08/07/2020

Um humanista um pouco bravo.

11 Comments

  • Tarcísio PintoFerreira ok

    Somente agora li mais essa peça literária de primeira da lavra do nosso caro Alexandre. Da cultura dele eu já tinha conhecimento, só não sabia que ele era esse globetrotter com essa capacidade de nos transportar, em pensamento, aos rincões, visões e paisagens maravilhosas a que ele se refere.Comi vivi e sofri as emoções da tourada,, direi apenas: bravo, Alexandre!!!

      • Massilon Miranda

        Tenho te acompanhado de perto nessa situação grave que você vive, porque -claro – seria muito melhor uma velhice com visão do que sem ela.
        No entanto, por te acompanhar de perto, não apenas nesse desafio, mas em muitos outros, posso dizer com toda certeza: você é resiliente e criativo e, com toda certeza, há de encontrar maneiras de ser produtivo, aproveitar as coisas boas da vida e superar desafios, seja qual for a limitação que a vida te impuser. Esse texto, inclusive, é o prenúncio disso.
        Há muitos casos de gente que vive com enormes limitações, físicas, mentais, financeiras e outras e que conseguem, apesar de tudo, ser felizes.
        Quero te dizer também que você não está nem estará sozinho. Quero ser o primeiro da fila pra viver junto contigo mais essa fase, ajudando no que puder a mitigar quaisquer que sejam as limitações que venham e torço para que não sejam tão fortes como você descreve.
        Você não fez Engenharia; eu sou engenheiro e infelizmente não sou médico, mas existe também esperança de que a medicina, que avançou e avança tão rápido, possa trazer melhoras substantivas para essa condição macular nos próximos anos. A esperança é a última que morre e, quem sabe, o “elefante aprende a falar” antes que esse quadro mais feio venha – de fato – te atrapalhar demais e te obrigue a se reinventar mais uma vez.
        Forte abraço, meu Irmão !

  • Chimicatti

    Uma verdadeira pérola essa crônica!
    Além da estética da escrita, a ética do conteúdo é uma verdadeira lição de como encarar de frente todos as nossas angústias!
    Por mais que o seu enxergar lhe falte um dia, sua visão e seu olhar jamais lhe faltarão!
    Ora, se fomos capazes de criar Deus e nos comportarmos como crias da criatura, somos ainda mais capazes de eleger e criar nosso modo de ver e viver essa maravilhosa sensação chamada vida! E sobre ela você é um bravo e guerreiro especialista!
    Parabéns pela ontológica crônica!

    • Alexandre Câmara

      Chimi, meu amigo, seu comentário me abraça produzindo uma forte energia para o meu encorajamento. Só escritor com sensibilidade sabe abraçar assim.
      Obrigado

  • Carlos Macedo

    Super Alexandre li esta sua crônica. Não li todas, mas pela qualidade desta volto a dizer, depois que conversamos você melhorou muito. Olhe eu aqui querendo associar-me ao seu faturamento de sucesso… não posso perder a alegria.
    Mas perdi. Ao ler os comentários dos seus amigos leitores, entendi que o conteúdo desta crônica não é ficção. É sério isso companheiro?

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