Crônica

Carta a um amigo em tempos outrora…

Caro amigo

Há tempos não nos vemos, como bem sabes. Nossas alternativas de transporte nos revelam pobres na engenharia. Desconfio que só ensinamos medicina e direito, e essas coisas, embora importantes, não constróem engenhocas. Nosso futuro parece sentenciado apenas a amenizar o sofrimento dos moribundos e à defesa dos poderosos que se esbaldam feitos parasitas da corte e aos borra-botas do governo. Seria possível, um dia, haver um meio de locomoção rápido a nos proporcionar encontros mais frequentes? Contentaria-me viajar para encontrá-lo ao menos uma vez a cada dois anos…

Aqui estava indo tudo bem, naquela pacata vivência: trabalho de dia e de alguns goles na taverna à noite. Ultimamente, no entanto, os barris de vinho têm estado com gosto acentuado de xarope. Dizem que é o tempo de viagem de Portugal para cá. 

Receio que essa missiva não encontre o ilustre amigo. Veio dar cabo por nossas bandas um cidadão, de suas terras, infestado por uma doença ruim. Chegou morto. Teria falecido com muito sofrimento. Pobre homem. Com ele veio a notícia de que, nos confins de sua morada, há uma desgraça de um vírus matando como nunca. Espero que o amigo e todos os seus estejam bem. Não é certo, também, que caso meu estimado receba essa singela carta, e a queira responder, encontre destinatário. Pois corre a língua pequena que o tal vírus empesteará  nossa cidade toda em poucos dias; logo, terei sorte se, a tempo, ler o seu retorno.

Tempos estranhos esses em que nossa medicina não dá conta desses míseros predadores de vidas. Já não basta a tuberculose a nos ceifar tantas? Dias desses perdemos um poeta brilhante. Novo. Dizem até que morreu virgem. Coitado do homem. Cantou, em prosa, tantas mulheres, como se, com todas elas, tivesse deitado corpo, louco e apaixonadamente. 

Doutor Inácio, nosso melhor médico, voltou há pouco da Europa – viagem longa – e nos disse temer pelo porvir. Lá nos estrangeiros a enfermidade está por demais avançada Por aqui demoramos a saber dessas coisas, afinal as notícias chegam rápidas como a felicidade…

Nem terminei essas poucas linhas e vejo, daqui de minha janela, um alvoroço em vizinho próximo. É certo, mais uma morte pelo bicho trazido pelo tal homem que daí teve seu passamento mesmo antes de chegar. 

Tenho tomado um elixir, que recomendo ao amigo, prescrito pelo tal doutor. Mas, prezado, não me pergunte do que se trata, pois que a fórmula é escondida a sete chaves pelo esculápio que, atualmente, anda cheio de prosa e famoso; é cotado até para ajudar o governo no departamento de saúde. Devo confessar, porém, acho um absurdo alguém deter para si os compostos de um remédio para fins lucrativos. Aonde vamos parar, meu caro?

Tenho a impressão de que o mundo está por acabar. O governo  não consegue resolver a economia e os cidadãos já não têm mais o quê fazer. Vivem para trabalhar e sustentar essa gente voraz do andar de cima.

Como se não bastasse, para dissimular suas loucuras e de sua prole, que vive levantando suspeita por andar com gente torta, nosso governante-mor não pára de criar problemas. Briga com todo mundo e não segura a língua, quase analfabeta, dentro da boca. Desejar a morte de alguém foge aos bons costumes e a quem é cristão; não seria de todo mal, porém, que o homem tivesse um suadouro e sofresse uns pares de dias com essa praga que anda nos açoitando. Dizem que ele já pegou o  bicho algumas vezes…

Mas a desgraçada da praga parece escolher só os maltrapilhos que, aos montes, perambulam por aí. Se bem que as notícias dão conta de que o tal vírus não está escolhendo bolso, não, e mata a quem vier pela frente…

Bom, despeço-me por aqui, desejando o melhor para o bom amigo.

Ah, ia me esquecendo: a tal droga além de ter nome esquisito, ninguém sabe se funciona ou não; chama-se cloroquina.

Alexandre

11/07/20

Um humanista um pouco bravo.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *