Crônica,  Literatura

“LIBERTAS QUAE SERA TAMEN”?

Tal qual nosso conjunto orgânico, formado e desenvolvido para que, harmonicamente, realize as funções vitais do nosso corpo, assim o é a sociedade, com as escusas cabíveis pela obviedade dessa assertiva.

Do mesmo modo são os interesses e as ocupações mundanas, eis que, o cuidado redobrado, o debate intenso e o temor da perda de uma das funções vitais, somente se reverberam nos momentos cuja perda ou deterioração dessas atividades vitais esteja eminente.

Assim tem sido no quesito liberdade… um dos pressupostos da convivência harmoniosa da sociedade, aliás, experimento recente sob a lupa da história contemporânea em virtude da qual o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980) disse: “estamos condenados a ser livres”.

Um amigo, dialogando com o ensaio deste texto, decifrou-me o pensamento de Sartre, segundo o qual “a liberdade era ou poderia ser melancólica.” Disse-me mais ainda: “o homem não tem essência ou melhor a existência (o ser) precede a essência. Por isto, somos a medida em que vamos existindo. Nada é dado de antemão. Pensa ele. Dumezil, arrematou: não existe caminho antes da caminhada. É a questão posta em o ser e o nada.”

De fato, pode não existir caminho antes da caminhada, mas, a evolução do Sapiens para Sapiens Sapiens traz esse fardo pesado sob o qual nossos ombros hão de trafegar pela capacidade de se antecipar aos fatos.

Eis que o comodismo animal e da vida em geral, torna-os (a nós) absolutamente previsíveis… e agora, tecnológica e artificialmente inteligentes o suficiente para que se possa antever o caminho, mesmo antes da caminhada, sobretudo, se depararmos com a liberdade, fadada ao extermínio, ainda que do imaginário coletivo conceitual.

E, se compreendermos que somos exatamente o que somos há 13 mil anos, quem sabe, com isso, a tecnologia começa a pretender alguma transformação no modus vivendi, fato, aliás, até esse momento imperceptível!

Seleira da paz, e assegurada em todos os instrumentos legislativos que nos norteiam, seja em função da busca do estado de natureza pacífico do ser humano, conforme Thomas Robbes, seja em função da deletéria capacidade destrutiva que sua, eventual, ausência é capaz de gerar.

Assim mesmo o porquê de, em tempos atuais, os Tribunais Brasileiros, ainda, se entulham de amontoados de razões e contrarrazões no afã de tê-la definida: a liberdade.

Então, qual o problema? O problema está no fato de que, todos os dias, nos últimos 18 meses, estarmos diante de defesas enfáticas desse valor imensurável que é a liberdade.

Teorias clássicas, sociológicas, antropológicas e filosóficas têm descido das estantes, dos escaninhos de nossas memórias e baixados dos incontáveis arquivos de HD e, pelas nuvens precipitadas para sustentar, a plenos pulmões, a imperiosa importância de se mantê-la ou mesmo de se conquistá-la.

Ora, há algo estranho no ar… tal qual nossos órgãos vitais somente são levados a um nível de ocupação cotidiana, por nós, quando estão em risco, tememos que a liberdade que nos foi prometida não nos tem sido entregue, quiçá subtraída!

Insisto: sobre qual liberdade estamos nos debruçando? O que é a liberdade senão uma sensação de autocontrole e livre arbítrio? Nada.

Já dizia eu, na ribalta do exercício da docência na Faculdade Mineira de Direito da honrada PUC-MG, então professador de direito das obrigações, que, de sofre, no início de cada ciclo de estudos, propunha um diálogo ético, para mim, existente no conflito de dois valores: a liberdade individual, assegurada categoricamente pela Constituição da República em face do dever jurídico gerado pela força do direito obrigacional como um limitador dessa própria conquista constitucional.

Uma vez sujeito de obrigações, seja ativo ou passivo, estar-se-á diante de limitações extremas quanto à sua liberdade. Há que se realizar a ação, deixar de fazer algo, dar ou restituir, recebe-lo, ainda que possa soar algo cuja remissão seja inimaginável.

O vínculo jurídico, seja de qual natureza for, gera, de maneira inafastável, limitação á plena liberdade. Essa é a moldura pela qual nossa sociedade forjada pelo Estado democrático de direito se ostenta, sobretudo pelo padrão de desenvolvimento econômico que sustenta todo esse modelo libertário de ser da nação brasileira.

Insisto: não há liberdade, mas, concessões privadas ou públicas para que nos comportemos de acordo com a ordem jurídica vigente. A de expressão, então, foge-me, totalmente, ao razoável de sua existência.

A expressão da palavra, do ato ou da omissão, há sempre que cumprir uma primorosa função de limitações recíprocas, eis que, o seu conteúdo não se pode aderir a qualquer figurino socialmente inadequado e juridicamente repreensível.

Onde está a liberdade, então, permeada pelo livre arbítrio? Em lugar algum, em tempo algum, sobretudo, no contemporâneo, cujas limitações são a tônica da convivência e que os espaços ocupados são os preestabelecidos e não, verdadeiramente, exercidos. São cedidos e, por isso mesmo, fiscalizados.

Ainda que tardia, mas, quando? Pobre dos enforcados sob esse mantra!

Jamais, a meu sentir, liberdade haverá, sobretudo, junto aos povos que se aglutinam ao redor da dúvida de quando comerão novamente, e quando serão, devidamente, educados. Sem o consumo adequado de proteína, carboidrato e vitaminas, não há cidadania libertária.

Mas, quanto mais carestia houver, mais retórica e mais seleto povo que se pensa livre haverá, ainda mais se percebermos o mote pelo qual o mandatário da nação com ela (liberdade) se relaciona. Poderia, assim, ser parafrasiado: la liberte et la constituition est moi. Que não me leia, mas que muitos “orapronobis”!

Chimicatti, nos umbrais de Junho, 31 de maio de 2020 do nascimento de INRI.

Apaixonado pelas palavras, pela advocacia e pela vida regada a um vinho!

2 Comments

  • Alexandre Câmara

    Caro, amigo, fico com a angustiante sensação de não ter entendido sua proposição. Então, peço vênia dupla, pois se, de fato não alcancei compreensão, equivoquei-me duas vezes: não ter entendido e discordado do que não compreendi.
    Parece-me Dumezil ter razão: não existe conquista sem luta (“não existe caminho sem caminhada”) – minha interpretação da frase. Não entendi avançarmos tanto tecnologicamente (IA etc) se há “o comodismo animal a nos tornar previsíveis”. Ora, se a caminhada, em meu entendimento, é luta (não necessariamente confronto armado) – e luta é inovar, criar melhorias de vida – tais quais a tecnologia – como não antever o caminho? A que caminho você se referi? O da liberdade? Este temos conquistados ano após ano. Onde a liberdade está fadada ao extermínio? Estamos com todas as instituições funcionando; liberdade de imprensa; redes sociais; WhatsApp etc a convocar manifestações nas ruas contra e a favor de governos, sejam eles de esquerda, direita ou de mentirinha (desgoverno como o atual)… Livre arbítrio sem vínculo jurídico, sem lei? Não delegamos a tutela ao Estado (Russeau) para que se pudesse ter organização e Estado Democrático de Direito com instituições e poderes funcionando em harmonia e independentemente (Montesquieu)?A tecnologia começa a pretender alguma transformação? Como assim? Uma criança com cinco anos já é capaz de dedilhar seu desejo e causar uma manifestação com seus coleguinhas exigindo que papai Noel lhe traga um iPhone XYZ. Se os tribunais estão lotados de razões e contrarrazões, não seria porque há liberdade e direito constituído? Não estamos na época de Franz Kafka – em O Processo – andamos mais como sociedade de lá para cá. A liberdade foi prometida por que, se a caminhada faz o caminho? Se elegemos e impichamos, legitimamente, governos? Ela nos foi “quiça subtraída” por quem? Se há Direito, Constituição, instituições, há liberdade, como não?
    Há ameaças feitas por um soldadinho de chumbo louco e seu bando de generais subdesenvolvidos? Sim há! Mas, até esse Congresso, sabotador de nação, está a gritar, além da OAB, imprensa etc. Haverá guerra civil? Daí lembremos, novamente, Dumezil. Não creio, porém.
    Finalmente, alegro-me, em concordarmos em algum ponto: quando há desigualdade social e carestia a caminhada fica mais difícil e o caminho mais longo. De qualquer sorte, que alguém ora-pro-nóbis… (ajeitando o termo – licença poética).
    Abraço

  • CHIMICATTI

    Você não somente compreendeu o intento do texto como reagiu à altura da provocação por ele trazida, como sói acontecer!
    Obrigado pela leitura e excelente comentário!

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