Causo,  Literatura

Heresia

Eram dezoito horas e cinquenta e cinco minutos, de um sábado invernado de frio e de cachaça, acompanhados de uma desfiada carne cozida saborosíssima, coberta de cebola roxa, refogada no caldo do próprio cozido!
Logo que se atravessava a soleira do pórtico vestibular, deparava-se com um horizontal balcão de ardósia, bem ao molde dos anos 80.
Por detrás desse lustrado balcão, ficava a Cidinha, manceba solteira, alegre e cativante, que atendia, com um belo sorriso no rosto, quem ali ia entreter-se e degustar uma maravilhosa carne cozida, tomar uma bela cachaça mineira e uma Brahma geladíssima!
Lá era o bar da Cida, que ficava na terceira rua à esquerda de quem entra na avenida principal, única do bucólico São José do Almeida, distrito de Jaboticatubas, onde dois irmãos, todos os sábados, lá se encontravam para uma boa prosa e para o deleite das iguarias servidas!
O bar da Cida ficava defronte à bela Praça do Almeida, como é carinhosamente chamada naquele Distrito de São José, e onde, também, no seu ponto mais alto, mantendo-se a tradição geográfica da história de Minas Gerais, se encontrava uma bela igreja matriz.
E, é claro, a delegacia ali pertinho, também!
Bom… dezoito horas e cinquenta e oito minutos, toca a última das badaladas do sino da igreja, avisando aos fiéis que, em dois minutos, começaria a missa das 6 da tarde!
Eis que, de rompante, adentra no bar, o Zé!
Um esguio e alto almeidense tradicional, todo escovado e de roupa alinhada, todavia já cambaleante, por certo em função de seu atribulado dia etílico!Cidinha, traga uma cachaça até na risca, rápido, senão vou perder a missa começar, exclamou o Zé!
Típico pedido dos que são cabras fortes e pedem que lhes sejam servidos em um copo de vidro (lagoinha), que comporta 150 mililitros, até na risca, de cachaça!
A Cidinha, espirituosa que só, retrucou de chofre:

– Oh Zé, cê num tem respeito não? Tá cambaleando pra ir pra missa e ainda quer mais cachaça? Você é um herege, definiu a Cidinha!
– O Zé, aturdido com o sino batendo, a praça esvaziando e a igreja enchendo, vira-se pro lado e sentencia, diretamente pros irmãos, acuados diante daquela epopeica cena:

– Ô Cidinha, traz a cachaça logo, que eu bebo é com a boca e rezo com a cabeça! O que tem uma coisa a ver com a outra?
Cidinha, sem pestanejar, trouxe-lhe o copo lagoinha até na risca, bateu sobre a ardósia e disse:

– Então tá, Zé! O herege aqui sou eu! Bebe sua cachaça e vai rezar com a boca, que é melhor!
Diria eu se estivesse lá:

– Ô Zé, orapronobis!

Chimicatti

Apaixonado pelas palavras, pela advocacia e pela vida regada a um vinho!

4 Comments

  • Luiz Chimicatti

    Eu estava lá. Vi tudo. Não faltou nada. Só faltou desenhar a cara do Zé bebendo aquele risco de pinga, sem fazer careta. Eu fiz a careta por ele. Alias, fiquei bêbado por ele. E Cidinha continuou sentada atrás do balcão, sem imaginar que havia presenciado uma história. A vida é assim. Quem está dentro da história, nem sabe o que é. Passei na esquina outro dia, indo para Jaboticatubas, nada mudou.

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