Crônica

Tudo mudou e nada muda: “meu pilão primeiro”.

Acordo com o dia frio e, por alguns minutos, esqueço que estou confinado. A pandemia, como um despertador, me dá a real lembrando-me de que,  sim, estou confinado há mais dias do que eu poderia imaginar ser possível acontecer. Enquanto tomo meu café hesito em ligar a televisão, abrir o jornal e ligar meu computador – rotina diária  – novo normal – nova onda.

Hoje, porém, algo está diferente. Há alguma coisa a mais que me tira atenção, me perturba. Tem um sentimento que vem e vai como ondas mansas de um mar barulhento…

Outro gole no café e a lembrança da última frase de protesto de um homem, agora morto, em cartazes carregados por multidões: I can’t breathe! 

Olho para o líquido preto que bebo e vejo como o preto é líquido, ainda, em todo mundo: sua vida escorre entre os dedos da sociedade que continua contaminada de preconceitos…

Abro o Face e os idiotas de plantão brigando por políticos de estimação, defendendo o indefensável. As mídias sociais viraram palco de uma massa de ignorantes que creem saber tudo e ser donos da verdade. Não vi um post sobre o homem assassinado por conta da sua cor de pele. Nada! Nenhum filósofo de redes sociais pronunciando-se a respeito. 

Pela janela, olhando à rua, ainda com pouca gente, vejo uma pessoa jogar para fora de seu carro caro, um maço amassado de cigarros; os bueiros, as enchentes, o próximo que se danem. Não há coletivo, lembrando a máxima de  que “na falta de farinha, meu pilão primeiro”. 

“Não consigo respirar” não me sai da cabeça e quase não consigo respirar também. Presidente tresloucado, ministro dando depoimento e fazendo comício em frente a polícia federal. Centrão voltando mostrando que a nova política faz inveja a Matusalém. Escândalos de super-faturamento em respiradores em vários Estados, mesmo após a  Lava Jato. Covid matando, a economia doente morrendo por causa do surto da insensatez, pela falta de empatia, ignorância e fome de poder. Comercio fechado não paga fornecedor, que demite empregado que morre de fome. A insensatez continua protegendo “meu pilão primeiro”. 

Um banco diminui seus lucros para apenas três bilhões e meio no trimestre – e não repassa para as micros e pequenas empresas os juros baixos que o BNDES libera para eles – pois querem garantias – afinal o lucro ficou muito baixo – só três bi e meio no trimestre: “meu pilão primeiro”.

O país segue desigual. A população não consegue respirar e o “I can’t breathe” continua ecoando em minha cabeça…

O joelho da falta de empatia e compaixão continua a sufocar nosso pescoço…

Tudo mudou e nada muda: meu pilão primeiro…

Alexandre

04/06/2020

Um humanista um pouco bravo.

One Comment

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *