Honra ao mérito – ao meu pai!
Aos onze anos de idade meu pai, com malária, tinha que levar marmita ao seu irmão para que esse almoçasse. O ano? 1940, época que boi era bicho do mato e corria atrás de gente. Época em que, se dizia, amarrava-se cachorro com linguiça.
A fazenda onde o irmão labutava, no interior de São Paulo, distanciava-se oito quilômetros de sua casa. A pé o menino com seus cambitos finos punha-se estrada de terra a fora debaixo de sol a pique. A febre causada pela doença tinha hora quase certa e quando ela chegava o menino sagui, de tão magrelo, tremia de se envergar.
A maldita da quentura dava as caras em algum momento da longa caminhada daquele moleque franzino e serelepe que tinha, todos os dias, que levar a comida à seu irmão. Sabedor de que a enfermidade não daria trégua na hora de cumprir com sua missão, meu pai criou uma estratégia. Simples e eficaz o plano era chegar na porteira da fazenda e esperar a danada da chama aparecer.
Ardendo do dedão do pé ao último fio de cabelo, sentado suportava seu calvário até que a flama passasse. Dez e trinta da manhã, um sol pra cada ser escalpelava o couro e o moleque ardia. Ardente morria de frio aos quarenta graus de temperatura. Após o pico extremo de sua agonia passar a criatura transpirava ensopando as roupas costuradas pela mãe. Onze horas e porteira adentro o guri entregava, exausto, a refeição ao irmão. Exitoso, e já sem febre, meu pai voltava pra casa feliz distraindo-se com bichos e a sorratear uma fruta ou outra que, abundante, encontrava no caminho, como se nada tivesse acontecido.
Tantas estórias ouvi de meu pai em seu tempo tenro de criança feliz que já toreava a vida com galhardia.
A vida dura era diferente da dura vida de hoje, pois que era, de fato, difícil.
De semelhante minha existência de moleque só tinha o corpo esquálido. Nunca tive que levar marmita a irmão meu que só começou a trabalhar aos vinte anos, mais ou menos. Se engripava tava no médico em minutos e ia de taxi. Minha moradia era em rua de paralelepípedo e a maior distância que eu percorria a pé eram quatro quarteirões até a escola, levando lancheira com uma guaraná Antártica caçula e um rocambole delicioso que minha mãe me comprava todos os dias. Como era bom.
Voltava da escola e meu almoço estava quentinho a me esperar. Assistia pica-pau, leão da montanha, Zé Coméia e ia jogar bola no meio da rua. Meu irmão? Jogava comigo. Malária já não havia. Só havia ralada de chão, botinadas etc.
Minha missão era ser feliz, apenas isso.
Quão completo foi meu pai. Nunca me deixou ter febre até que ela passasse sozinha. Nunca me fez levar marmita a ninguém. Só me ensinou ser aquele moleque que pra casa voltava feliz. Daquele que ardia em febre só não me poupou da coragem e resiliência. Do sofrimento sempre me desviou como pode, muitas vezes sem poder.
Minha infância foi ótima com boi no prato. No pasto só nas férias quando voltávamos ao interior. Mas o bicho já o encontrávamos mansinho, mansinho…
Meu pai? Fez o melhor que pode e cumpriu sua missão, com louvor, até o fim de sua brava existência.
Alexandre
24/01/2020
One Comment
CRISTINA MARTA CAMARA SANTOS
♥️